CineBH aplaude Carlos Francisco, devoto de Brecht e ator de “O Agente Secreto”, “Marte 1” e “Estranho Caminho”

Foto © Leo Lara/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte (MG)

O ator mineiro Carlos Francisco chegou cedo ao teatro, mas muito tarde ao cinema. Somava 44 anos quando começou a interpretar pequenos papéis em filmes como “O Casamento de Romeu e Julieta”, de Bruno Barreto, uma comédia romântica, boleira e descompromissada. Faria, depois, um detetive em “É Proibido Fumar”, de Anna Muylaert.

Nos palcos paulistanos, ele representava espetáculos pensados coletivamente por seu grupo, o Folias d’Arte, devoto de São Bertolt Brecht. Fazia de tudo no palco e, também, na sede da trupe. Interpretava os mais diversos personagens, cantava, tocava (até) “contrabalde”, mix de balde com contrabaixo, vendia ingressos, faxinava o teatro, administrava as contas. E encontrava tempo para somar forças com os colegas que construíram o “Arte Contra a Barbárie”, movimento artístico-político que lutou pela criação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro (paulistano). Um operário laborioso, que vivia para materializar sonho da infância e da juventude — ser ator.

Hoje, aos 63 anos, o mineiro Carlos Francisco assiste, na CineBH 2025 (Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte), à sua consagração. Na noite inaugural do festival mineiro, ele recebeu o Troféu Horizonte por sua trajetória artística agora dedicada, primordialmente, ao cinema.

O ator subiu ao palco do Cine Theatro Brasil vestido de terno azul escuro e acompanhado pela mãe, originária do Quilombo dos Pinhões, da esposa, filho, tia e sobrinha. Recebeu o Horizonte, que espelha a paisagem ondulada das montanhas de suas Minas Gerais (ele é belo-horizontino) das mãos da amiga e atriz Rejane Faria, sua “esposa ficcional” no filme “Marte 1”, que o projetou nacionalmente. Afinal, o longa de Gabriel Martins vendeu quase 100 mil ingressos, dado notável para trama centrada no trabalho e sonhos de uma família negra, e tornou-se o indicado brasileiro à disputa por vaga no Oscar internacional, três anos atrás. Mesma situação de seu novo, e badaladíssimo, longa-metragem, “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça.

Ao lado de Rejane, subiu ao palco — para a homenagem a Carlos Francisco — o cineasta mineiro Maurílio Martins, que o dirigiu no filme “No Coração do Mundo” (parceria com Gabriel Martins, 2016). Os dois, atriz e cineasta, enalteceram o imenso talento do amigo e parceiro. Rejane fez questão de revelar um segredo: “Carlos é organizadíssimo, vocês não fazem ideia do que seja um quarto de hotel habitado por ele, tudo no lugar certinho, parece até mostruário de mall, aqueles que saem nas revistas”.

Depois da homenagem, o ator permaneceu no palco para apresentar a pré-estreia mineira de “O Agente Secreto”, no qual interpreta o Senhor Alexandre, projecionista do Cine São Luiz e sogro do personagem Marcelo (ou Armando), interpretado por Wagner Moura.

Carlos Francisco, que encantou o público cinéfilo como o amoroso e compreensivo pai de família de “Marte 1” e o pai ríspido de “Estranho Caminho”, dessa vez interpreta um avó, afetuoso com o neto Fernando e saudoso (da filha Fátima, a companheira de Armando). Subiram ao palco, para acompanhá-lo na nova missão, a mineira Laura Lufési (Flávia) e o pernambucano Ítalo Martins (Arlindo).

Kleber Mendonça está na Europa, onde participou dos festivais de Biarritz, na França, e San Sebastián, no País Basco. Uma esticada até Madri permitiu que ele mostrasse “O Agente Secreto” aos espanhóis filiados à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Dali, partiria para a Suíça, pois o Festival de Zurique prestará homenagem ao ator Wagner Moura, laureado com a Palma de Ouro em Cannes (o diretor Kleber Mendonça também foi premiado).

A noite inaugural da CineBH foi uma soma de desejos do público mineiro. Primeiro, o de assistir às 2h38’ de peripécias de “O Agente Secreto”. Os mil lugares do tradicional Cine Theatro Brasil não deram para começar. Esgotaram-se em menos de uma hora (o mesmo aconteceu no Cine Ceará). Segundo, ver um ator belo-horizontino, preto e de origem quilombola, talentoso como ele só, receber o Troféu Horizonte em sua cidade natal. Por isso, Carlos Francisco foi aplaudido de pé e demoradamente.

Na manhã seguinte, o ator, que o cinema custou a descobrir, quase não pôde fruir as 30 páginas, fartamente ilustradas, a ele dedicadas pelo volumoso catálogo da CineBH, tantos foram seus compromissos.

Tudo começou, no Palácio das Artes, centro nevrálgico do festival, com debate sobre seu percurso artístico, enriquecido pela presença do cineasta Gabriel Martins e da antropóloga e documentarista Junia Torres, mediado pelo crítico Marcelo Miranda. Mal colocou o pé nos jardins, Carlos Francisco foi instado a iniciar maratona de entrevistas individuais a jornalistas digitais e estudantes. Sem almoçar, submeteu-se a uma coletiva de imprensa, esta para jornalistas que (ainda) escrevem textos (este segmento da imprensa reduz-se a olhos vistos). Depois de falar (e dar respostas brilhantes, registre-se) com a turma da “escrita”, Carlos Francisco seguiu recebendo a turma do celular, que cresce de forma torrencial-avassaladora.

A Revista de CINEMA fez quatro perguntas ao ator.

— Você chegou tarde ao cinema, mas agora estourou. Está em muitos filmes. Você pode traçar um quadro de seus novos trabalhos, pelo menos dos mais recentes?

— Depois do sucesso de “Bacurau” (mais de 800 mil espectadores), de “Marte 1”, pelo qual ganhei o Prêmio Grande Otelo da Academia Brasileira de Cinema, e de “Estranho Caminho”, que me rendeu o prêmio de melhor performance internacional no Festival Tribeca-Nova York, vieram muitos e novos trabalhos. Estou em “O Agente Secreto”, filme duplamente premiado em Cannes, em “Enterre seus Mortos”, de Marco Dutra, que estreia ainda esse ano, em “Suçuarana”, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, que me rendeu o Troféu Candango de melhor ator coadjuvante no Festival de Brasília e está em cartaz país a fora, e em vários curtas e longas. Não vou lembrar todos. Mas estou no novíssimo filme de Thiago B. Mendonça (trabalhamos juntos pela oitava vez), chamado “O Filme do Medo”, estou em “Feito Pipa”, de Alan Deberton, “O Filho de Mil Homens”, de Daniel Rezende, baseado em livro de Valter Hugo Mãe, que vai estrear na Mostra Internacional de Cinema de SP… Entre os curtas, quero lembrar “Joqueta”, da cearense Luciana Vieira (só me falta o título de cidadão honorário de Fortaleza!, brinca), “Escumalha” e “O Sol”, esses dois do Thiago (B. Mendonça). Brinquei com o título de cidadão honorário de Fortaleza, pois estou em dois filmes do Guto Parente (além do premiado “Estranho Caminho”, faço participação especial no recentíssimo “Morte e Vida Madalena”, que recebeu o Prêmio da Crítica no Festival de Brasília, semana passada), trabalhei com Alan Deberton e com curta-metragistas de lá… Ah, lembrei-me de trabalho recente e inédito, “O Bom Retorno”, de Breno Alvarenga, mineiro como eu.

— Gostaria que você nos dissesse (mesmo na presença de alguns cineastas que o dirigiram) quais são os seus personagens mais bem-construídos. Aqueles que você, ao assistir ao filme, diz, intimamente: “esse sim, eu interpretei muito bem”!

— É difícil fazer essa escolha. Gosto de todos os personagens que interpreto. Por isso, digo que todos são meus preferidos, pois a entrega é a mesma, seja a um protagonista, coadjuvante ou participação especial. Alguns saltaram mais ao olhos, pois renderam prêmios. Aí, claro, destacam-se “Marte 1”, pelo qual ganhei o Otelo, “Estranho Caminho”, premiado no Tribeca e no Festival do Rio, “Canção ao Longe”, da Clarissa Campolina, que me rendeu o Candango (melhor ator) três anos atrás, e, claro, o Damiano, do “Bacurau”, pois o filme foi muito visto e comentado pelo público. Mas, com sinceridade, tenho que dizer que todos os personagens exigem o mesmo trabalho em seu processo de criação.

— Você nasceu em BH, capital mineira, mas teve uma fértil passagem por São Paulo, pelo Folias d’Arte, grupo integrado à experiência fertilizadora dos coletivos teatrais, e pelos filmes de Thiago B. Mendonça. Que importância teve esse período em sua vida? Você me contou, anos atrás, que seu ofício o levava da bilheteria ao palco, da administração do espaço à faxina…

— Sou filho de mãe solo, quilombola. Cresci cercado de parentes, avós, tios e tias, primos. Sempre participei de congadas e outros festejos. E sempre tive paixão pelo teatro, desde menino. Realizava, com amigos, pequenas encenações nos quintais. E cobrávamos ingresso! Na escola, eu estava sempre envolvido com as peças e fui parar no teatro amador. A vida me obrigou a ter outro tipo de trabalho. Fui funcionário público em BH, exerci outros ofícios, mas sempre sonhando com minha carreira de ator de teatro. A partir de 1991, mudei-me para São Paulo, onde exerceria a função de vendedor de carros. Fui me virando até onde foi possível. Tornei-me frequentador dos cursos da Oficina Oswald de Andrade paulistana. Uma bela experiência, agora interrompida pela Prefeitura de São Paulo, que resolveu transformá-la em espaço de oficinas de empreendedorismo. Algo lamentável. Acabei me ligando ao pessoal que formaria o Folias d’Arte, um coletivo de teatro muito importante na minha vida. Bertolt Brecht foi essencial à nossa formação e na concepção dos nossos espetáculos. Nossas montagens eram fruto de muita pesquisa, fizemos teatro político. Mergulhamos no nosso entorno, nas questões do país. No Folias, eu fiz de tudo. Atuei em “Othelo”, de Shakespeare, “Orestéia – O Canto do Bode”, recriação da Trilogia de Ésquilo, encenamos trechos de “Galileu Galileu”, do Brecht, em “Folias Galileu”. Foi uma montagem feita de forma fragmentada. Cada ator escolhia um trecho da peça, um cômodo do teatro e um personagem. Houve quem escolhesse o banheiro, um corredor etc. etc. Eu escolhi o hall do teatro e esperava o público com um balde e uma vassoura. Me cabia realizar um monólogo de cinco minutos. Estabeleci relação com o público. Perguntei a eles o que eu tinha na mão? “Um balde e uma vassoura”, responderam. Aí, eu somei o balde e o cabo da vassoura e criei um “contrabalde”. E nele toquei. Aí, na interação, o público percebeu que aqueles dois objetos destinados à faxina podiam virar outra coisa. Podíamos fabular juntos e ver ali um instrumento musical.

— Você tem instrução formal, universitária? Afinal, suas ideias são muito articuladas, elaboradas. Certa vez, Marilena Chaui definiu a inteligência de Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico sem educação formal que chegou à presidência da República, como afetiva, vivenciada. Esse é o seu caso?

— Quando resolvi que seria ator profissional, eu precisava ter o certificado da DRT (Delegacia Regional do Trabalho). Para obtê-lo, eu tinha que ter o segundo grau completo. Como eu não tinha, recorri ao Supletivo. Fiz os testes e fui aprovado em todas as disciplinas, menos Matemática. Tentei uma segunda vez e levei pau de novo. Resolvi, então, me dedicar, com afinco, ao estudo da Matemática. Passei. Um amigo me disse: por que você não faz, agora, o vestibular, já que estudou tanto e teve ótimo desempenho? Fiz as provas para o vestibular de Comunicação. Passei e comecei a estudar à noite. Mas faltava muito às aulas, pois tinha que trabalhar, ganhar a vida. Um dia, o professor de Língua Portuguesa me disse: “vou reprová-lo, embora você seja o melhor aluno da minha disciplina. Mas você não cumpriu a frequência exigida”. A dureza da vida e a necessidade de estar presente para ter a frequência necessária acabaram me fazendo desistir do curso. Ganhar a vida e garantir o sustento de minha família era minha prioridade. Mas continuei aprendendo, lendo, estudando, convivendo com pessoas, companheiros incríveis. No teatro, além de estudar os textos, pesquisar com os colegas, fiz cursos de clown, mímica, bufão, máscaras. Claro que não fui à Itália estudar a Comédia dell’arte, mas aprendi a fazer máscaras de cabaça, de cuia, de sementes. Meus estudos são permanentes. Toco alguns instrumentos, mas não leio partitura. Dizem que tenho ouvido musical.


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/09/cinebh-aplaude-carlos-francisco-devoto-de-brecht-e-ator-de-o-agente-secreto-marte-1-e-estranho-caminho/

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