Milton Gonçalves, detentor de quatro prêmios por sua “Rainha Diaba”, ganha filme que revê sua trajetória no teatro, cinema e TV

Por Maria do Rosário Caetano

“Milton Gonçalves – Além do Espetáculo”, quarto longa-metragem do cineasta carioca Luiz Antônio Pilar, estreia nessa quinta-feira, 6 de novembro, no circuito de arte brasileiro. E o faz depois de ser exibido na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Pilar, realizador afro-brasileiro, de 65 anos, foi codiretor de telenovelas na TV Globo (caso de “Sinhá Moça”) e estreou no longa-metragem com “Remoção” (2013), que se fez seguir de “Candeia”, sobre o compositor e criador da escola de samba Quilombo, e “Lima Barreto, ao Terceiro Dia” (ambos de 2018).

Ao dedicar seu novo longa-metragem a Milton Gonçalves, o diretor fecha trilogia dedicada a grandes nomes da cultura brasileira – um músico, um escritor e um ator. Candeia (1935-1978) deixou substantiva herança aos cultores do samba. Afonso Henriques Lima Barreto (1881-1922), um dos grandes escritores brasileiros, criador de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos e Isaías Caminha, morreu cedo como Candeia. E internado num hospício.

Milton Gonçalves, se nasceu menino pobre, em Monte Santo de Minas, conheceria a glória em vida e se transformaria no maior astro black das telenovelas brasileiras. Num dos atores fetiche de Dias Gomes. Seu Zelão das Asas, de “O Bem Amado”, alcançou invejável notoriedade. Para ele, o dramaturgo baiano criaria papeis significativos em “Bandeira 2”, “Roque Santeiro” (Padre Honório), “Mandala”, “Sinal de Alerta” e “Araponga”.

Mesmo não sendo protagonista de nenhum folhetim televisivo, Milton brilharia em “Irmãos Coragem”, como Braz Canoeiro, “O Homem que Deve Morrer”, “Sem Lenço, sem Documento”, “Pulo do Gato”, “Baila Comigo”, “Terras do sem Fim”, “Cambalacho”, “Sinhá Moça”, “O Rei do Gado”, “América”, “Cobras & Lagartos” e muitas outras. Em “Pecado Capital”, interpretaria o Dr. Percival, um médico, papel até então reservado a atores brancos.

Milton destacou-se, também, em minisséries como “Madona de Cedro”, “Tenda dos Milagres”, na qual deu vida ao Mestre Lídio, “As Noivas de Copacabana” e “Chiquinha Gonzaga”. E não esnobou programas humorísticos (inclusive o “Zorra Total”), pois adorava fazer graça, fosse em textos refinados ou avacalhados.

De estatura mediana, Milton Gonçalves cercou-se de tal aura de respeitabilidade, que todos o ouviam. Parecia um velho e sereno mestre, um conselheiro venerável. Tony Tornado, do alto de seus 2 metros de altura e, mesmo sendo três anos mais velho que Milton, ouvia o ator-mestre com redobrada atenção. Assim como Cosme dos Santos, revelado, ainda menino pelo sueco Arns Sucksdorff (“Meu Lar É Copacabana”). Ele contará, no documentário de Pilar, ser outro que aceitava, religiosamente, os conselhos miltonianos. Hoje, aos 69 anos, Cosme relembra a frase recorrente nas conversas com o mestre: “estude, estude, estude muito”. Mesmo conselho ouvido, inúmeras vez por Tony Tornado.

Como contar, num documentário, a história de um homem como Milton Gonçalves, que além de grande ator foi um “excelente marido, pai, amigo e conselheiro”?

Ele teve zonas de sombras? A vida lhe foi difícil, cheia de obstáculos? Ou ele passou por ela com muitas alegrias e realizações?

Luiz Antônio Pilar se propôs, a julgar-se pelo título do filme (“Milton Gonçalves – Além do Espetáculo”), a deixar o artista em segundo plano e dedicar-se ao homem, ao cidadão, ao marido-e-pai generoso, ao amigo de seus amigos.

Sua estratégia narrativa é a da coleta de depoimentos. Por isso, o documentário resultou num “talking heads” muitas vezes redundante. São tantas as “cabeças falantes” e as declarações tão picotadas, que sonhamos ver alguém que possa discorrer com mais calma sobre o torcedor apaixonado pelo Flamengo (a mais bela imagem do filme mostra Milton, de camisa rubro-negra, dentro de um estádio). Ou sobre aquele que foi um dos mais sólidos pilares do Teatro de Arena. Ou do militante político dos mais ativos, filiado ao MBD.

O diretor de “Além do Espetáculo” não cumpre sua promessa. Preferiu abrir espaço generoso para que profissionais de TV (Daniel Filho, Irene Ravache, Juca de Oliveira, Camila e Antônio Pitanga, Maria Ceiça, Maria de Médicis), do Teatro de Arena (Miriam Mehler, Ari Toledo) e do cinema (Antônio Carlos da Fontoura) relembrem a trajetória do artista na TV, nos palcos e nas telas.

O Milton “além do espetáculo” será evocado pelas filhas Catarina e Alda. E o ator será visto ao lado do terceiro filho, Maurício, num carro, ambos cobertos pelo manto rubro-negro, a caminho do estádio. As filhas, sim, apresentam o pai fora da telinha, da ribalta e da telona dos cinemas.

Elas lembrarão a mãe, Dona Oda, companheira de toda vida do ator e mãe de seus três filhos. Milton fará breve intervenção, registrada em material de arquivo, para lembrar que desposou uma mulher branca por razão muito simples: os dois se apaixonaram-se para o todo e o sempre.

As filhas evocarão passeios de carro (“ele adorava dirigir por horas a fio”), visitas ao interiorzão de Minas, onde nascera (“conhecemos a casinha humilde de seus pais, nossos avós, afastada de tudo”), a dor que ele sentiu ao perder a esposa Oda, o AVC que o prenderia a uma cama, a memória que se esvaía, a cada novo dia, e o olhar de quem, aos 88 anos, parecia pedir para partir.

A questão do racismo é tocada de leve, vez ou outra. Afinal, o artista passou, sim, por momentos difíceis – ninguém foi prestigar a diplomação de Oda como advogada, pois ela escolhera um preto como marido. Ele, porém, como Pelé, tornou-se um astro, daqueles frequentes nas telinhas de nossos lares e pelo qual nos apaixonávamos. Quem, entre os espectadores de “O Bem Amado”, não torceu pelo êxito do vôo do sonhador Zelão das Asas?

O uso de material de arquivo em “Além do Espetáculo” é modesto. O que predomina, full time, são as “cabeças falantes”. Mas veremos alguns fragmentos de novelas, fotos dos tempos do Arena e da (quase) desaparecida “O Bem Amado”. O vôo de Zelão, felizmente, foi salvo. E trechos de três ou quatro filmes.

Nenhuma das áreas de atuação de Milton o reconheceu mais que o cinema. Sendo um homem do “Arena”, de Boal e Guanieri, era normal que estreasse num filme (“O Grande Momento”) dirigido por Roberto Santos e produzido por Nelson Pereira (também dos Santos). Afinal, o Arena e o Cinema Novo (e, depois, o CPC-UNE) manteriam fortes laços.

Milton desempenharia, ainda, muitos e pequenos papéis até chegar aos filmes que mais o destacaram – “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade, “O Anjos Nasceu”, de Júlio Bressane (ambos de 1969), “Rainha Diaba” (foto), de Antonio Carlos da Fontoura (1975), e “Natal da Portela”, de Paulo Cezar Saraceni (1988).

Em “Macunaíma”, Joaquim Pedro escalou Milton para interpretar Jiguê, um dos irmãos do “Herói sem Nenhum Caráter”. O trio se compunha com o Macunaíma preto (Grande Otelo, já que o Macunaíma branco seria Paulo José) e o indígena Manaape (Rodolfo Arena).

No transgressor “O Anjo Nasceu”, Milton dividiu o protagonismo masculino com Hugo Carvana, formando a dupla Santamaria e Urtiga, dois marginais nada convencionais. Ele integraria o timaço de atores do excessivo, mas inventivo, “Ladrões de Cinema”, de Fernando Côni Campos, trabalharia com Hector Babenco em “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, “O Beijo da Mulher Aranha” e “Carandiru”. E com Leon Hirszman em “Eles Não Usam Black-Tie”. Neste filme, lhe coube o papel do metalúrgico Bráulio, de índole ponderada, apaziguadora. Com a família Barreto faria o Zé Pelintra, de “O Rei do Rio” (papel que lhe renderia o prêmio de melhor coadjuvante no Rio Cine Festival). Milton Gonçalves marcou presença em quase 60 filmes.

Em “Além do Espetáculo”, serão vistas, em especial, imagens de “Natal da Portela” e “Rainha Diaba”. Não houve papel mais consagrador, na trajetória de Milton, que o da travesti criada por Plínio Marcos para o thriller-pop-gay de Fontoura.

Em meados da década de 1970, nenhum ator brilhou tanto quanto Milton. Sua “Diaba” fez barba, cabelo e bigode nas telas dos cinemas (500 mil espectadores, excelente resultado para um filme com censura de 18 anos) e nas premiações mais badaladas. Conquistou os quatro troféus cinematográficos mais prestigiados do país – o Candango, do Festival de Brasília, o Air France, patrocinado pela empresa aérea, a Coruja de Ouro, do Instituto Nacional de Cinema,  e o Governador do Estado. Nenhum ator, preto ou branco, alcançou tamanho feito. E por total merecimento.

O protagonista absoluto de “A Rainha Diaba” não constituía papel fácil. Travesti violenta, traficante de drogas, dona de bocas de fumo na Lapa carioca, capaz de se desmanchar em carinhos com o bandido-galã Bereco (Stepan Nercessian) e, dali a instantes, mobilizar “seu bando de travecas” para tocar o terror, promover apavorantes banhos de sangue.

Milton hesitou antes de dizer “sim!” a Fontoura. Outro que rejeitara o papel fôra o volumoso Procópio Mariano (que desempenharia personagem secundária na trama). Afinal, o festejado ator da TV Globo era pai de menino e meninas em idade escolar. E se, na escola, os colegas de Maurício começassem a debochar dele, depois de verem (num jornal ou revista) o pai, ator de telenovelas, maquiado e vestido de forma espalhafatosa-escandalosa encarnado numa “bicha louca”?

Depois de conversa com a esposa e os filhos, todos entenderam que Milton Gonçalves não podia rejeitar papel tão importante. O ator se entregou de corpo e alma à Diaba, personagem que ainda hoje povoa o imaginário de milhares de cinéfilos. E constitui-se em sua atuação mais festejada e premiada.

O documentário de Luiz Antônio Pilar seleciona bons trechos do filme de Fontoura. E nos mostra Milton contracenando com Procópio Mariano. Num pequeno deslize, o diretor da “Diaba” diz que a Rainha talvez fosse o  primeiro papel de Milton Gonçalves no cinema. Decerto queria dizer que “aquele fôra o primeiro protagonista absoluto do ator”.

Antes da Diaba, Milton já atuara, desde 1958, em quase 30 filmes. Claro que, em nenhum deles, ocupara tanto espaço e pudera mostrar, com tamanha visceralidade, a exuberância de seu talento.

 

Milton Gonçalves – Além do Espetáculo
Brasil, 2025, documentário, 94 minutos
Direção e roteiro: Luiz Antônio Pilar
Fotografia: Daniel Leite e Tomás Camargo
Montagem: Fernanda Portela
Música: Antonio Neves
Pesquisa: Rute Alves
Produção: Luciana Boal Marinho e Alberto Graça (MPC Filmes)
Coprodução: Globo Filmes, Globo News e Canal Brasil
Distribuição: Bretz Filmes


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/11/milton-goncalves-detentor-de-quatro-premios-por-sua-rainha-diaba-ganha-filme-que-reve-sua-trajetoria-no-teatro-cinema-e-tv/

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