Festival Italiano mostra “Mais que uma Vida”, registro dos últimos anos de Roberto Rossellini, o maestro neorrealista

Por Maria do Rosário Caetano

“Roberto Rossellini – Mais que uma Vida”, realização de Ilaria De Laurentiis, Rafaelle Brunetti e Andrea Massara, é um documentário que deve ser visto por todos aqueles que – como o italiano Bertolucci, o argentino Gato Barbieri e os brasileiros Sarraceni-Glauber-Joel Barcelos – acreditaram na máxima “Non si può vivere senza Rossellini”.

Atração do Festival de Cinema Italiano no Brasil, em cartaz em mais de 80 cidades brasileiras ao longo desse mês de novembro, o filme terá sessões no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) de São Paulo, no sábado, 15/11, e na semana seguinte (quinta-feira, 27).

Rossellini, diretor de filmes de culto como “Roma Cidade Aberta” e “Viagem à Itália”, teve vida afetiva das mais movimentadas. Seis casamentos. Quatro oficiais, com as italianas Assia Noris, anulado, e Marcella de Marchis, mãe de Renzo, com a sueca Ingrid Bergman e com a indiana Sonali DasGupta. E mais dois, extra-oficiais (com a atriz Anna Magnani, a “Mama de todas as Romas”, e Silvia D’Amico).

Por que entrar na vida pessoal de um dos mais importantes cineastas italianos, referência (e influência) assumida de Truffaut e Godard, de Martin Scorsese e de centenas de diretores espalhados pelo mundo?

Opção pelo fait divers, em detrimento do projeto estético-artístico do diretor de “Paisà” e “Alemanha Ana Zero”?

Quem assistir ao documentário do trio de diretores peninsulares, que agora integra a programação do Festival Italiano, entenderá o amálgama que Rossellini produziu entre vida privada e profissional ao longo de seus 71 anos. Um de seus mais dedicados assistentes, o francês Jean Herman, garantirá, em “ Mais que uma Vida”, que, para o mestre neorrealista, “seus amores e seu cinema eram a mesma coisa”.

O documentário, de fruição obrigatória, tamanhas suas qualidades, começa em 1956. O cineasta, então com exatos 50 anos, vivia imensa crise criativa e existencial. Seus três filmes protagonizados por sua mulher, a atriz Ingrid Bergman (“Stromboli”, “Europa 51” e “Viagem à Itália”), não haviam sido bem recebidos. Para piorar, e por consequência, não obtiveram o resultado financeiro esperado. Rossellini enfrentava dificuldades  incontornáveis junto aos produtores.

A própria Ingrid, estrela do cinema sueco e de Hollywood, vivia, aos 41 anos, imensas angústias. Ela afirmará, em entrevista resgatada por “Mais que uma Vida”, que os filmes que fizera com Rossellini “haviam sido mal recebidos pelo público e pela crítica”. Um convite de Hollywood a levaria, naquele momento, de volta à mais poderosa e influente indústria do cinema planetário, a estadunidense.

A ida de Rossellini para a Índia, onde dirigiria, a convite do primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, o documentário “Índia, Mãe Terra” (finalizado em 1958), não seria simples. Uma nova paixão o arremessaria num vendaval midiático. Afinal, ele iria separar-se da estrela escandinavo-hollywoodiana, para casar-se com a indiana Sonali DasGupta (1928-2014). Que, por sua vez, causava escândalo junto a seus conterrâneos. Casada com Harisadhan DasGupta, um dos mais respeitados documentaristas do país, e mãe de um bebê, Raja DasGupta, a jovem quebrava com os tradicionais costumes de seu país. E, sem nenhuma experiência cinematográfica, ganhava o status de co-roteirista do documentário rosselliniano. O filme, em processo de produção e sobre a complexa e superpopulosa Índia, teria sua realização posta em xeque.

Sonali DasGupta (22 anos mais nova que Rossellini) viria a ser a companheira mais longeva do cineasta. Um matrimônio do qual nasceriam dois filhos (Gil e Raffaella DasGupta Rossellini) e que duraria 16 anos (1957 a 1973), mais que o dobro do tempo vivido por ele ao lado de La Bergman.

No final da vida, um novo amor, Silvia D’Amico, apareceria na existência do cineasta e professor (Rossellini tornara-se o mais disputado mestre do Centro Experimental de Cinematografia de Roma). A jovem Silvia, que poderia ser filha do professor quase septuagenário, dará comovente depoimento a “Mais que uma Vida”.

Ela relembrará atitude de Rossellini que a deixara profundamente comovida: em setembro de 1973, morria Anna Magnani. No dia do funeral da atriz, protagonista de “Roma Cidade Aberta”, Rossellini percebeu que “não haviam contratado um maquiador” para aquele momento de despedida de sua grande amiga e ex-mulher. Por isso, “ele mesmo resolveu maquiá-la, pois a conhecia muito bem”. Sabia que ela não ia querer ser velada “daquele jeito”.

Além de Silvia D’Amico, o documentário de Laurentiis-Brunetti-Massara ouve testemunhos reveladores, que muito nos dizem sobre as duas décadas finais do influente mestre neorrealista. O diretor de fotografia Aldo Tonti lembrará a tumultuada experiência indiana e os momentos em que, “apaixonados, Rossellini e Sonali sumiram”. Restou a ele, que tinha um filho como ajudante, colher imagens Índia adentro, na esperança de que elas agradassem ao diretor, quando ele retomasse as filmagens.

O documentário conta, também, com outros sólidos testemunhos sobre a trajetória existencial e cinematográfica do diretor de “De Crápula a Herói”. Além de D’Amico, Tonti e do jovem assistente francês Jean Herman, aquele para quem “Rossellini não separava seus amores de seu cinema”, muito saberemos ao ouvir o montador (depois cineasta) Tinto Brass e dois dos seis filhos de Rossellini, o produtor-diretor Renzo e a atriz Isabella.

E veremos Roberto Rosselini viver novo momento de glória: em 1959, ao lado da esposa Sonali, apresentaria “Il Generale della Rovere” (no Brasil, “De Crápula a Herói”) e ganharia o Leão de Ouro, láurea máxima do mais antigo festival do mundo, o de Veneza. Seu primeiro filme depois da tumultuada experiência indiana, uma ficção protagonizada pelo grande ator (e cineasta) Vittorio De Sica.

O mesmo De Sica que, alguns anos depois, será visto em material de arquivo, discordando de declarações do amigo, cada vez mais disposto a afastar-se do cinema ficcional-industrial, para mergulhar no projeto de um cinema “útil e de informação” (histórica e científica). E fascinado pela experiência do magistério empreendida no Centro Experimental de Cinematografia.

São desse período “didático” filmes como “A Idade do Ferro”, “A Tomada do Poder por Luís XIV”, “Luta pela Sobrevivência” e perfis de Sócrates, Agostinho de Ippona, Descartes e Pascal. Um grupo de cineastas fora convidado, pelo comando da RAI (Rádio e Televisão Italiana), a realizar projetos para a emissora. Todos disseram não. A exceção foi Rossellini, que viu na desprezada TV um veículo poderoso. E que contaria com o filho Renzo, seu braço direito, na retaguarda.

Em maio de 1977, veremos Roberto Rossellini na função de presidente do Júri de Cannes. Ele aceitara a missão, desde que pudesse manter encontro com cineastas e jovens para debater o futuro do cinema. O que foi feito e documentado (em imagens que parecem ter sido realizadas no dia de ontem). O melhor filme ‘cannoise’ seria “Pai Patrão”, dos irmãos Taviani. Um longa-metragem feito para a TV, com baixo orçamento e atores desconhecidos. Para júbilo de Rossellini, que premiava realização de dois jovens conterrâneos com a cobiçada Palma de Ouro. Pena que a trinca de diretores peninsulares tenha se esquecido de dizer que, naquele mesmo festival, Rossellini patrocinaria a escolha de “Di Glauber”, de seu discípulo e amigo Glauber Rocha, para um prêmio especial (melhor curta-metragem).

“Mais que uma Vida” encerra-se com a morte súbita (por ninguém esperada) de Roberto Rossellini, em sua Roma natal, menos de um mês depois do Festival de Cannes. Saía da vida para entrar (em definitivo) na história do cinema. “Roma Cidade Aberta”, “Paisà” e “Alemanha Ano Zero” formariam uma estudadíssima trilogia dos tempos de guerra; os três filmes com Ingrid Bergman seriam reassistidos e revalorizados.

“Viagem à Itália” tornar-se-ia um dos filmes mais cultuados do mundo. O brasileiro Paulo Cezar Saraceni, tido como autor da máxima “Non si può vivere senza Rossellini”, registraria, num catálogo do Festival do Rio, seu preito ao longa-metragem protagonizado por Ingrid Bergman e George Sanders, o casal em crise que visita corpos petrificados pela lava do vulcão, no sítio arqueológico de Pompéia, na região da Campânia.

Saraceni confessaria que assistira a “Viagem à Itália” em todas as sessões de uma semana inteira. Seus olhos estavam magnetizados. Bertolucci usaria a frase “Non si può vivere senza Rossellini” em “Antes da Revolução” e o saxofonista Gato Barbieri lembraria a mesma frase em “Calle 56”, documentário de Fernando Trueba, ao evocar sua convivência com Glauber Rocha. Martin Scorsese intitularia série sobre a influência do cinema italiano em sua trajetória com citação afetiva: “Il Mio Viaggio in Italia”.

Este ano, na disputa pelo David Di Donatello, o Oscar italiano, destacaram-se dois longas-metragens, ambos ocupados em prestar tributo a Rossellini — “Nápoles-Nova York”, de Gabrielle Salvatores, e “Il Tiempo Che Ci Vuole”, de Francesa Comencini. No primeiro, duas crianças clandestinas vagam pela grande cidade norte-americana. E são vistas em frente a um cinema que exibe “Paisà”. O mesmo filme que arranca lágrimas do velho Luigi Comencini, pai e tema do filme da filha Francesca.

Quem, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, assistiu ao delicioso “Nouvelle Vague”, do estadunidense Richard Linklater, deliciou-se com duas sequências dedicadas a Roberto Rossellini. Primeiro, vemos o maestro (representado por um ator) visitando a redação da revista Cahiers du Cinéma. Depois, como carona de Godard, num conversível. O enfant terrible, interpretado pelo ótimo Guillaume Marbeck, leva o diretor de um dos episódios de “Rogopag” (Rossellini-Godard-Pasolini-Gregoretti, 1962) a seu destino, trocando com ele ideias que incendiavam os desejos da Nova Onda francesa. Para o jovem Godard, Rossellini escreveria, com parceiros, o roteiro de “Les Carabiniers” (no Brasil, “Tempo de Guerra”, 1963).

E quem quiser saber mais sobre os amores vulcânicos de Rossellini tem que assistir ao documentário “Bergman & Magnani: A Guerra dos Vulcões” (Francesco Patierno, 2012, 62 minutos). Afinal, Anna Magnani, ex de Rossellini, estava, naquele comecinho dos anos 1950, furiosa com a perda do amado para Ingrid Bergman. Tanto que protagonizou, na mesma ocasião e cenário (ilhas do sul da Itália), o filme “Vulcano”. Se La Bergman protagonizava “Stromboli”, sob o comando de Rossellini, por que ela não podia colocar em erupção o seu “Vulcão” pessoal, sob direção de William Dierterle? Muita lava escorreu nas páginas dos jornais, revistas, tele e cinejornais, incapazes de resistir a histórias de amores e desamores protagonizadas por celebridades tão festejadas.

 

Roberto Rossellini – Mais que uma Vida
Itália e Letônia, 2025, 96 minutos, 16 anos
Direção: Ilaria De Laurentiis, Rafaelle Brunetti e Andrea Massara
Vozes: Sergio Castelitto e Kássia Smutniak
Testemunhos: Renzo Rossellini, Jean Herman, Tinto Brass, Ettore Bernadei, Isabella Rossellini, Beppe Cino, Silvia D’Amico
Em cartaz: no Festival de Cinema Italiano, em 80 cidades brasileiras, até 29 de novembro
Em São Paulo: sessões no CCBB no sábado, 15 de novembro, e na quinta-feira, 27.


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/11/festival-italiano-mostra-mais-que-uma-vida-registro-dos-ultimos-anos-de-roberto-rossellini-o-maestro-neorrealista/

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