Por que o brasileiro não se reconhece em “O Agente Secreto”?
Foto © Victor Jucá
Filme narra uma imagem do Brasil que o brasileiro recusa e uma jornada interna de um pai para viver em paz com seu filho, em uma narrativa humana e sensível capaz de emocionar plateias do mundo inteiro
Por Hermes Leal
Por que é tão difícil para o brasileiro entender o filme “O Agente Secreto”? Até mesmo a crítica patina em não apontar as razões que levaram o filme a ser entendido no mundo inteiro, e colocar seu diretor, Kleber Mendonça Filho, entre os melhores do mundo. Correndo o risco, ainda, de brilhar no Oscar. A ideia aqui é mostrar como o filme revela o brasileiro, a imagem de si que ele não reconhece. Uma leitura que indico para quem já assistiu ao filme e assim poder emendar muitos fios soltos.
Vamos começar pelo roteiro do longa, que muitos acham confuso. Todo bom filme só é confuso no primeiro ato, quando não se sabe o que está acontecendo, até ocorrer uma atualização, geralmente, depois de aproximadamente 30 minutos decorridos. “O Agente Secreto” fecha esses 30 minutos revelando que a jornada de Armando (Wagner Moura) é fugir com o seu filho para o exterior. A partir deste ponto, a história se clareia. Mas o final do filme vai além do resultado dessa fuga, se vai ou não conseguir fugir ou ser morto. Há mais um fechamento no final que faz uma grande crítica do que é ser brasileiro.
O roteiro do filme tem um fechamento nada frustrante, ao contrário, finaliza com uma sacada genial, que já vinha sendo implicada na mente do espectador de maneira cognitiva, sem ele perceber, que são as gravações da história de Armando. O que fecha o filme não é somente o plano da ação, o destino de Armando e um grupo de refugiados em uma pequena pensão, mas o interesse de uma estudante em conhecer a História do Brasil nos anos 70, pesquisando, nos dias de hoje, as histórias dos perseguidos e mortos pela ditadura. Há um fechamento moral também que reflete a imagem do brasileiro.
O fim do filme deixa bem claro o destino final do personagem Armando, mas a última sequência, a que fecha o filme, tem um sentido maior, mostrando o quanto o brasileiro é alienado na sua condição social, com uma crítica sobre nós mesmos. Uma crítica pesada sobre como não damos realmente nenhum valor à nossa própria história. É um soco quando a jovem estudante descobre a falta de sensibilidade pelo o que aconteceu naqueles anos da ditadura. Deveríamos deixar a sala de cinema indignados.
O brasileiro é o tema maior do filme
Antes de mostrar como o filme tem “cinema” na sua narrativa, como os personagens sensibilizam com suas almas, é preciso dizer que o filme é feito de Brasil de ponta a ponta. Desde o Cinema Novo de Glauber Rocha, um filme não espelhava tanto o “ser” brasileiro. Tenho pesquisado muito o assunto, e estou realizando um documentário sobre o tema, chamado “A Imagem do Brasil”, para a TV Brasil. Está no filme de Kleber essa imagem de como realmente somos e não como queremos aparecer. A corrupção policial logo no início do filme, dos números de mortos no carnaval como uma carnificina que ninguém se importa, um cadáver a mais não faz diferença, até a maneira como as autoridades vivem para servir a elite com seus jeitinhos escabrosos.
Para mostrar essa relação enjoativa entre poder, polícia e elite, Kleber recria uma das cenas mais antagônicas do cinema brasileiro, que é a transformação da sala de arquivos em uma delegacia falsa para atender uma madame que estava sendo julgada por ser responsável pela morte do filho da empregada. Aqui o diretor recria essa relação de perversidade que faz parte da cultura do brasileiro, com o caso do menino Miguel Otávio, de cinco anos, filho da empregada, que caiu de um prédio de luxo quando estava sob a guarda da patroa, em 2020, no Recife.
Essa mesma relação que o brasileiro ainda mantém com as vantagens do poder aparece através do pacto da ditadura (o mesmo tipo de política de orientação fascista que impera hoje no Brasil), quando os interesses privados se misturam com os interesses públicos, no filme, na ligação da universidade pública com os grandes poderosos do mercado privado. O Google saiu da Avenida Paulista para se instalar na USP. No filme, a narrativa principal é a do personagem Armando, que está sendo perseguido por uma dessas corporações, dirigida por uma figura grotesca e machista. Um tipo que ainda podemos ver no poder político no Brasil.
Há, ainda, no filme, um lado do brasileiro que ele renega, de uma alienação pela “cultura da espontaneidade”, quando um delegado (Robério Diógenes), debochado e inconveniente, manda Hans (Udo Kier), um ex-soldado da Segunda Guerra Mundial, tirar a camisa e mostrar as horríveis cicatrizes em todo o seu corpo. Ele diz estupefato que Hans é um ex-soldado nazista, sem levar em conta que ele está todo retalhado por ser um judeu que sobreviveu às terríveis torturas nos campos de concentração nazistas. Há fidelidade com o mundo real com o brasileiro sem noção ali retratado.
Estética da arte cinematográfica
O roteiro do filme é elegante, profundamente dramaturgo, não tem partes obscuras, sendo claro o tempo todo, não tem profusão de ideias, nem falta de rumo de seus personagens. O filme tem uma estética baseada na narrativa e no destino do personagem principal, o professor universitário Armando, um refugiado carregando um luto profundo pela morte da esposa e o desejo de viver ao lado do filho em outro país.
O personagem Armando é rodeado por acontecimentos, mesmo os que não são importantes, e a dramaturgia dos muitos outros personagens à sua volta serve para reforçar a densidade de um personagem perturbado pelo sentimento de perda, de perseguição, gerando uma alma verdadeira, uma falta que afeta realmente os sentimentos do personagem, o que é raridade no cinema brasileiro.
Essa jornada interna do personagem impregna a narrativa e sensibiliza o espectador, especialmente quando mostra o contrato transcendente entre pai e filho, a potência de vida que resta ao Armando, que já perdeu a esposa. O filme se apoia nesse personagem cercado de “morte”, como a personagem da babá em “Roma”, de Alfonso Cuarón, também assaltada pela presença da morte, com a camada do “sensível”, aquilo que está no plano mais profundo do que o espectador percebe como “inteligível”.
No inteligível existe uma narrativa que estabelece um programa de ação do personagem Armando, baseado em duas expectativas para fechar o filme, o de ser morto pelos pistoleiros e o de viver livre com o filho. Na expectativa de fuga se revela também que Armando faz parte de um grupo de “refugiados”, inclusive de Angola, e no plano da ação, uma pena de morte de Armando por ter interferido nessa relação antiética entre o “poder” político e privado e o “saber” de um industrial “que merecia estar no Carandiru”. Esse ódio dos apoiadores de ditaduras de ontem ficou claro também, recentemente, quando o governo passado de extrema direita tentou acabar com as universidades no Brasil.
Do ponto de vista da pressão dos bandidos, encosta em Armando um delegado ligado a um esquadrão da morte que representa o que de pior existe na sociedade brasileira de ontem e de hoje. Gerando tensão maior ao personagem coagido por si próprio. O delegado deixa bem claro que é corrupto, assassino, e que está a serviço da elite brasileira. A pressão do anti-herói serve para que Armando sinta o gosto de sangue, sinta que seu tempo é curto, que precisa de um passaporte para fugir, e de um documento que mostre a existência de sua mãe.
O mundo ao redor
Uma das formas que Kleber encontrou para enfatizar esse lado perverso do brasileiro na figura do delegado, que além de não entender que o alemão não era nazista e sim judeu, e forjar uma delegacia falsa para atender uma madame criminosa, foi através do mito da “perna cabeluda”, notícia que ganhou a mídia sensacionalista dos anos 70, causando, em Recife, uma onda de medo e terror.
Essa história da perna cabeluda reproduzida no filme, encontrada na barriga de um tubarão, era obra desse delegado fascista, e de suas ações no esquadrão da morte. A perna fazia parte de uma pessoa assassinada por eles. Essa parte não é metafórica. E a polícia ainda mata desta forma no Brasil, como aconteceu há pouco tempo no Rio de Janeiro.
Por último, é importante ressaltar que a história atual que aparece no filme, em que estudantes pesquisam fitas gravadas em 1977 com vozes dos protagonistas do filme relando suas condições de perseguidos e refugiados, remonta ao período em que a ditadura dava sinais de enfraquecimento. A presença da personagem Elza (Maria Fernanda Cândido) representa, na História do Brasil, uma época em que se começou a falar de uma anistia ampla e irrestrita que chegaria somente em 1979, demarcando o início da derrocada do regime militar. Por isso, existem as fitas gravadas com a história de Armando. História que sobrou do próprio país que incomoda só por existir. História que infelizmente negamos ser nossa.
Hermes Leal é jornalista, escritor, com oito livros publicados, e documentarista, com uma extensa obra. É Mestre em Cinema pela ECA/USP e Doutor em Linguística pela FFLCH/USP.
Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/11/por-que-o-brasileiro-nao-se-reconhece-em-o-agente-secreto/
Conteúdo importado automaticamente pelo HOST Portal News
🔔 Clique no link, entre em nossa comunidade no WhatsApp do Guia Lacerda e receba notícias em tempo real!
