Louis Lumière, “o último inventor e primeiro cineasta”, renasce em aliciante documentário de Thierry Frémaux
Por Maria do Rosário Caetano
“Lumière! A Aventura Continua”, novo documentário de Thierry Frémaux, chega aos cinemas brasileiros (dia 11 de dezembro) depois de mobilizar 100 mil espectadores na França. E o faz como representação e reconhecimento ao “último inventor e primeiro cineasta” da história do cinema. E que cineasta!
Para Frémaux, diretor artístico do Festival de Cannes e gestor do Instituto Lumière, de Lyon (entidade presidida pela atriz Irène Jacob), “Louis Lumière é fonte seminal do cinema”.
Em conversa com jornalistas na Reserva Cultural paulistana, o crítico, curador e administrador cultural traçou paralelo entre as trajetórias do “primeiro cineasta” e de seu contemporâneo, Georges Méliès (1861-1938): a vertente Lumière fertilizou “Roberto Rossellini e a Nouvelle Vague”, enquanto Méliès fertilizou “Federico Fellini e Hollywood”.
Falante, articulado e capaz de sintetizar ideias em frases de grande apelo midiático, Thierry Frémaux, de 65 anos, defendeu apaixonadamente o personagem principal de seu segundo documentário dedicado aos Irmãos Lumière. Como Auguste, o mais velho, “só dirigiu um único e ótimo filme”, o documentarista deu ao mais novo, artista prolífico, a primazia. Afinal, atento aos desafios da mise en scène, Louis Lumière se encarregou da feitura de dezenas e dezenas de filmes.
Juntos, os dois espalhariam “operadores” do cinemascópio pelos cinco continentes, para colher “vistas” (de 50 segundos cada). Assim, saciariam a sede que espectadores nutriam, no final do século XIX e começo do XX, por paisagens e povos distantes.
No total, os Lumière legaram a seus pósteros — estima-se — quase dois mil filmes, rodados em Lyon e muitas outras cidades francesas, na Rússia, EUA, Egito, China, Japão, Índia, Vietnã (Indochina), Argélia ou Baku, no Afeganistão.
O fervor do diretor do Instituto Lumière (e de Cannes) por Louis e seu irmão Auguste é tão grande que ele fez questão de citar (e endossar) frase proferida pelo tcheco Milos Forman, em visita ao museu lionês: “A História se divide entre a.C e d.C (antes e depois de Cristo). Já o cinema se divide em a.L e d.L (antes e depois dos Lumière”).

Na parte final de “A Aventura Continua”, filme que sequencia “Lumiére!, A Aventura Começa” (de 2016), veremos o estadunidense Francis Ford Coppola realizando remake de “A Saída dos Operários da Fábrica”.
Por que o diretor de “Apocalypse Now” foi escolhido para comandar essa sequência e não Bellocchio, Scorsese, Wenders, Bilge Ceylan, Assayas, Jane Campion, Spike Lee ou Ken Loach?
Esta e outras respostas dadas por Thierry Frémaux aos jornalistas brasileiros, na Reserva Cultural (após exibição de “Lumière! A Aventura Continua”) seguem abaixo.
Recentemente, a cineasta Valeria Parisi utilizou trechos de filmes dos Lumière para contextualizar seu documentário “Maldito Modigliani”. É recorrente o uso de filmes de Louis e Auguste em obras realizadas mundo afora? O Instituto Lumière dispõe de estatísticas de tal recorrência?
Frémaux – Não conheço esse documentário sobre Modigliani. O que posso dizer é que, por muito tempo, o uso dos filmes dos Lumière enfrentava um problema sério: a má qualidade do material disponível, que ainda não passara pelo devido processo de restauração. Em 1946, portanto depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o pesquisador Georges Sadoul (1904-1967) visitou o velho Louis Lumière, que morreria dois anos depois, no sul da França. Perguntou a ele, durante longa entrevista que se transformaria em livro, onde estavam os filmes dos Irmãos Lumière. “Estão todos comigo”, respondeu de pronto. E o “último inventor e primeiro cineasta” se referia a centenas de filmes de 50 segundos cada. Por sorte, estavam todos com ele, que era produtor e conseguiu proteger seu patrimônio. O mesmo não aconteceria com Buster Keaton, que teve parte de sua obra perdida, pois não era produtor dela. Ciente de que todo acervo dos Irmãos Lumière estava com Louis, Georges Sadoul regressou a Paris e iniciou, com apoio fundamental do CNC (Centro Nacional de Cinema da França), um verdadeiro e urgente projeto de resgate do Acervo Lumière. Saíram em busca de filmes guardados por colecionadores, pois desejavam chegar a cópias com a qualidade possível. Foram resgatados, numa primeira etapa, 120 filmes. Hoje, dos 1.100 títulos oficialmente catalogados, 240 já se encontram no melhor padrão de restauro. E sabemos que há mais de 500 títulos dos Lumière ainda fora de catálogo.
Ao assistir aos seus dois documentários dedicados aos Lumière nos surpreendemos com a extraordinária qualidade das imagens. Parece que os filmes foram feitos ontem, e não entre 1895 e 1905. No primeiro, um trecho das filmagens realizadas em poço de petróleo, no Azerbaijão, traz algumas avarias. No segundo, em filmagem externa realizada em rua japonesa, não vemos a perfeição dos outros filmes. São exceções. Como foi possível preservar o acervo Lumière com tamanha qualidade?
Frémaux – Hoje, os herdeiros dos Irmãos Lumière, com apoio do Instituto de Lyon, protegem a utilização desses filmes, um verdadeiro patrimônio universal. E, juntos, nos dedicamos a trabalho de arqueologia, de busca permanente de novos filmes e do restauro dos já existentes. Devemos muito a Georges Sadoul, ao CNC e aos colecionadores. Para chegar a uma cópia de qualidade, somamos os filmes disponíveis no acervo da família Lumière aos de muitos colecionadores. Trata-se de processo muito trabalhoso. E fazemos questão de ter cópias digitais, sem esquecer de preservar uma em película 35 milímetros.
Você continua dirigindo o Instituto Lumière, em Lyon, mesmo sendo o diretor artístico do Festival de Cannes?
Frémaux – Sim, desde 2000. Quando me convidaram para a dirigir a Cinemateca Francesa, conversei com Bertrand Tavernier (1941-2021) para me aconselhar. Ele disse: “Não deixe o Instituto, pois há muito por fazer em Lyon. Permaneça aqui”. Aí veio o convite do Festival de Cannes. De novo me aconselhei com Tavernier. E ele foi incisivo: “Aceite Cannes, mas continue seu trabalho no Instituto Lumière”. Então, há 25 anos tenho o privilégio sagrado de estar ligado à preservação e à difusão do cinema, em Lyon e Cannes. Sou historiador de formação. Mas não escolhi a perspectiva do historiador como proposta de vida. Minha perspectiva é a cinefilia. Meu olhar sobre os Irmãos Lumière se dá pelo cinema, pela linguagem. Louis Lumière era um metteur en scène. Ele fez do cinema, que então nascia, uma arte. Ele sabia onde colocar a câmera, sabia que filmar era escrever com a câmera. Assim como seus sucessores. Fritz Lang, Murnau, Godard e tantos cineastas inventores.
O Instituto Lumière foi criado em 1982. Em maio daquele ano, um grupo de jornalistas brasileiros foi convidado a visitar Lyon, onde conheceria, entre outros patrimônios municipais, o restaurante-escola de Paul Bocuse e o Museu do Tecido. A França mostrava dois de seus esteios culturais: a culinária e a moda. O Museu Lumière, implantado na mansão da família, ficou de fora. Passados 43 anos e somados a seus dois filmes, esta realidade se transformou? Hoje o trio Culinária-Moda-Cinema é ofertado aos visitantes?
Frémaux – Lyon tem uma rua chamada Rue du Premier Film. Mas, por muitos anos, a presença cultural-cinematográfica dos Lumière ficou restrita àquela rua. O que é espantoso, pois não sabemos onde e em que dia nasceu a Música, a Literatura, a Pintura, mas sabemos quando e onde nasceu o Cinema. E quem foram seus inventores. Claro que os Lumière não são os únicos responsáveis pela invenção do Cinema. Thomas Edison, nos EUA, fez sua parte e outros a ele se somaram. Mas quem foi o último inventor e o primeiro cineasta? Foi Louis Lumière, luz em francês. Ele criou a “lumière” num bairro chamado Mon Plaisir. O prazer de criar a luz, o cinema.
Os Irmãos Lumière fizeram seus filmes com duração de 50 segundos (cada). Era o que o suporte disponível (130 anos atrás) permitia? Eles trabalharam com película de nitrato?
Frémaux – Com o cinematógrafo era possível filmar por 50 segundos, sem cortes. Então, podemos dizer que o cinema dos Lumière representa o grau zero do plano sequência. Eles trabalharam com película de celuloide. O cinema nasceu, portanto, com filmes de apenas 50 segundos. Depois, Meliès, Max Linder, Charles Chaplin e outros foram realizando filmes mais longos. Curtas-metragens, médias, até chegar a produções de 90 minutos. E, claro, houve pioneiros, como Abel Gance, que fizeram filmes de cinco ou setes horas. Basta lembrar do “Napoleon”, que dura sete horas. Voltar, hoje – um tempo em que somos cercados de imagens por todos os lados – ao cinema dos Lumière é recuperar a inocência perdida. Godard dizia ser necessário “falar com os analfabetos para reinventar a inocência que não devemos perder”. Com o digital e a IA (inteligência artificial), o cinema perde parte de seu frescor e muito de sua “verdade”. Wim Wenders, quando nos visitou no Instituto de Lyon, afirmou: “podemos confiar nos filmes de Lumière!”. O que ele quis dizer? Que hoje, com as novas tecnologias, a manipulação das imagens torna-se mais fácil, possível. Estamos nos distanciando do orgânico, do “bio”, do natural. O que é “Apocalypse Now”? É um filme que traz o orgânico, a vida. Coppola filmou naquele lugar (região das Filipinas, próximo ao Vietnã), com soldados e seis helicópteros do Exército filipino. Ele sempre nos diz: “meu filme não é sobre a guerra, meu filme é a guerra”. Ele não filmou um helicóptero e o multiplicou, digitalmente, por seis. Hoje, vemos guerras nos filmes, nas plataformas de streaming, que nos trazem imagens sem assinatura. Até séries badaladas são desprovidas de assinatura. E chamo de “assinatura” criações de Fritz Lang, Murnau, Rossellini, Fellini, Godard, Coppola…
Por isso você escolheu o diretor de “Apocalypse Now” para realizar o remake de “A Saída dos Operários da Fábrica”, dos Lumière, para o final de “A Aventura Continua”? Por sinal, vemos, no seu documentário, três versões (remake) para a mesma saída da fábrica. Todas assinadas pelos Irmãos Lumière.
Frémaux – Não convidei Coppola para realizar o remake para meu documentário. O que fazemos, todos os anos, no Instituto Lumière, é convidar – no dia 19 de março, aniversário do primeiro filme dos Lumière – atrizes, diretores, enfim, um profissional do cinema, para realizar remake de “A Saída dos Operários da Fábrica”. Já convidamos Catherine Deneuve, Jane Fonda, Coppola e muitos outros para dirigirem, durante dez minutos, o remake. Convidamos integrantes da população de Lyon (médicos, jogadores de futebol, trabalhadores) a reviver a saída dos operários da fábrica. E eles o fazem com imensa alegria. Afinal, acreditamos que a história do cinema é também diversão. Um jogo.
Lumière!, a Aventura Continua | Lumière! L’Aventure Continue
França, 2024, 103 minutos, 12 anos
Direção e roteiro: Thierry Frémaux
Produção: Instituto Lumière e Sorties d’Usine Productions
Produção executiva: Maelle Arnaud
Trilha Sonora: Gabriel Fauré
Edição: Jonathan Cayssials, Simon Gemelli, Thierry Frémaux
Distruibuição: Imovision
Estreia nos cinemas brasileiros: 11 de dezembro de 2025
Lumière!, a Aventura Começa | Lumière! L’Aventure Comence
França, 2016, 90 minutos
Direção e roteiro: Thierry Frémaux
Produção: Instituto Lumière
Música: Camile Saint-Saëns
Disponível no streaming: Reserva Imovision e Apple TV
Conteúdo importado automaticamente pelo HOST Portal News
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