“Buenos Aires” do agreste, “Cais”, “Presépio “ e “Dona Laudelina” são destaques dos primeiros dias da Mostra de Cinema de Gostoso

“Buenos Aires” do agreste, “Cais”, “Presépio “ e “Dona Laudelina” são destaques dos primeiros dias da Mostra de Cinema de Gostoso

Foto: “BuenosAires”, de Tuca Siqueira

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso (RN)

“BuenosAires” é o nome do quarto longa-metragem da cineasta pernambucana Tuca Siqueira. E de uma cidade situada a 79 km do Recife, na Zona da Mata, dominada pelo cultivo da cana-de-açúcar. Lá vivem 13 mil habitantes. Eles, ou pelo menos parte deles, cultivam e festejam a capital argentina, que lhes emprestou o nome. Sem esquecer a idolatria por Leonel Messi. E pelo Boca Juniors.

O público da décima-segunda edição da Mostra de Cinema de Gostoso, que lotou o Cine Praia do Maceió, com 700 assentos, para assistir a “BuenosAires” (grafia adotada pelo filme), divertiu-se muito.

A cineasta pernambucana define “BuenosAires” como um “filme paisagem”. Ou seja, um documentário que “biografa” uma cidade, seus logradouros, sua gente, seus costumes. A se julgar pelo que é narrado ao longo de 70 minutos, os “bonaerenses brasileiros” se orgulham de viver em município que cultiva cidade distante, de quase 3 milhões de habitantes, origem espanhola e italiana, capital de país tricampeão do mundo (graças a Maradona e Messi).

A Buenos Aires nordestina é mestiça, vive do cultivo da cana e do turismo rural. E como sua vizinha Nazaré da Mata, ama o Carnaval e o Maracatu. O que, no entanto, não impede seus moradores de pintarem casas com cores fortes e contrastadas para emular o Caminito portenho. Um Caminito que a maioria absoluta de nossos “portenhos” da Zona da Mata desconhece. Se a vaidosa e europeia Buenos Aires se orgulha de seu porto turístico-cultural, a Buenos Aires pernambucana vive distante do mar.

Tudo no “filme paisagem” caminha para o futebol. Para o Boca Juniors, time que teve em Maradona seu craque maior. E, nunca é demais lembrar, Caminito é o coração do reduto azul-amarelo, cores que uniformizam os idólatras de Maradona.

Tuca Siqueira mergulhará, com seus personagens (nenhum deles ganhará destaque sobre outros), no mundo do futebol. Essa paixão une argentinos e brasileiros, rivais históricos. Os primeiros amam a seleção vestida de azul. Os brasileiros a seleção que traja camisa verde-amarela (apesar de desgates políticos recentes). Os argentinos são tricampeões. O Brasil é pentacampeão, única nação do mundo a conquistar tal glória. Mesmo que vivamos em período de estio boleiro, muitos corações palpitam acelerados quando a bola começa a rolar.

No filme de Tuca, contradições saltam aos olhos. Na camisa azul-amarelo do Boca pernambucano estão impressas marca e slogan da caninha Pitú: “legitimamente brasileira”. E veremos torcedores do município da Zona da Mata expressarem criticamente o apego de alguns de seus conterrâneos pelo time eternizado por Maradona. Mas o que a diretora de “BuenosAires” quer é esboçar uma crônica suave (até demais) da paisagem e população que escolheu como temas.

WhatsApp-Image-2025-11-23-at-15.15.26 “Buenos Aires” do agreste, “Cais”, “Presépio “ e “Dona Laudelina” são destaques dos primeiros dias da Mostra de Cinema de Gostoso
As diretoras Osani, de “Pupá”, e Tuca Siqueira, de “BuenosAires” © MRC

No debate do filme, Tuca Siqueira contou que, ao apresentar o projeto de seu documentário a laboratórios de roteiro (nacionais e internacionais), ouviu de muitos consultores o seguinte veredito: “o mundo está em convulsão, está se acabando, e os longas documentais que nos interessam são os que abordam urgências”. Os recursos de fundos seriam (serão), pois, aplicados em filmes sobre a tragédia (e urgência) do mundo. Que ela realizasse — sugeriram — seu projeto com recursos próprios.

A diretora pernambucana, autora do longa ficcional “Amores de Chumbo” (2017), admitiu que seu documentário “não é uma comédia, mas pauta-se pela leveza”. E que o realizou com R$300 mil. Depois de dirigir três documentários (“A Mesa Vermelha”, “Iracema DOC” e “BuenosAires”) e a série “Chabadabadá”, com Cláudio Assis e Júlia Moraes, Tuca Siqueira finaliza sua segunda ficção, “Coração de Lona”.

O longa brasiliense “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo, encerra, na Mostra de Gostoso, sua bem-sucedida maratona por festivais, iniciada na mostra Generation, na Berlinale. No Brasil, estreou em Gramado, onde foi recebido como um filme sensível, banhado em elementos espirituais, protagonizado por duas crianças (Laura Brandão e Serena) encantadoras e muito bem preparadas para seus desempenhos. O elenco adulto também foi escolhido com grande sensibilidade, a ponto da veterana Aline Marta, a bisavó de Sofia, ganhar o Kikito de melhor atriz coadjuvante, láurea que se somaria ao Prêmio Especial do Júri e melhor trilha sonora (Alekos Vuskovic).

No festival gaúcho, “Coisas Invisíveis” foi visto como obra dramática, na qual o tema da diversidade é colocado com imensa sutileza, fluindo suavemente em meio a uma série de outras questões. Convidado da noite de encerramento do Festival de Brasília, o longa candango comoveu o público por seus atores (todos do Centro-Oeste), paisagens (brasilienses e de arredores goianos) e sua essência amorosa. Nele, a capital da República é vista em sua vida cotidiana, sem o estigma recorrente de “antro de corrupções político-parlamentares”.

A ênfase na questão identitária (uma de suas personagens é transexual) passou a ganhar destaque na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, único filme brasileiro a somar dois troféus, fez jus ao recém-criado troféu Prisma Queer. E a justificativa do júri destacou suas qualidades na abordagem do tema da transexualidade.

Da Mostra SP, o longa partiu para o Festival Mix Brasil, dedicado à diversidade. E conquistou o prêmio máximo de sua principal competição — o Troféu Coelho de Ouro de melhor filme.

Durante debate na Mostra de Gostoso, Rafaela Camelo comentou a recepção ao filme nos diversos festivais brasileiros: “estamos a poucos dias do lançamento de ‘A Natureza das Coisas Invisíveis’ (nessa quinta-feira, 27 de novembro), que acontecerá em 40 cidades. E estamos trabalhando o filme, junto com nossa distribuidora, a Vitrine, como um drama familiar. Que, sim, traz a questão queer, mesmo que ela não apareça de forma contestadora, já que flui naturalmente. A atenção que o tema ganhou (na Mostra e no Mix Brasil) se deve, creio, à falta de filmes que abordem a transexualidade na infância. E nós a abordamos sem ligá-la a nenhum tipo de violência”.

Outro destaque da competição de longas-metragens — “Cais”, de Safira Moreira — veio da Bahia. O filme, um documentário poético premiado no Olhar de Cinema curitibano, tem o ritmo de um ‘fluvial movie’. A diretora decidiu, depois da perda da mãe, uma chef de cuisine dedicada à culinária baiana, visitar lugares (na Bahia e Maranhão), registrar ofícios e pessoas (destaque para Tiganá Santana e o mestre Mateus Aleluia, dos Tincoãs). Mulheres que preparam o dendê e um ourives (o pai da cineasta) mostram (só visualmente, sem discursos) seus saberes e fazeres. “Cais”, por sinal, é um filme que acredita na forças das imagens. O que acaba por dar imenso valor às palavras de Mateus Aleluia e Tinganá, artistas e pensadores, quando delas eles fazem uso.

A competição de Gostoso conta, ainda, com a comédia metalinguística “Morte e Vida Madalena”, do cearense Guto Parente, uma declaração de amor aos que fazem cinema em condições adversas (pouco dinheiro, em especial) e “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia, documentário sobre trabalhadoras domésticas, selecionado para o prestigioso IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã).

A Mostra Panorama, apresentada no Espaço Petrobras (também construído na Praia do Maceió, mas em espaço fechado), foi aberta com a exibição do longa “Uma Baleia Pode Ser Dilacerada como uma Escola de Samba”, de Felipe M. Bragança e Marina Meliande. A dupla, que produziu (e/ou dirigiu) seis longas-metragens (três em parceria, e três solo, ele com “Não Devore meu Coração” e “Um Animal Amarelo”, ela com “Mormaço”), segue com suas narrativas experimentais. Dessa vez, realizam um filme-instalação, inspirado no “Moby Dick”, de Melville. Ao invés de águas abundantes, estamos em terra firme, num Rio de Janeiro suburbano, dominado por cores, alegorias e ritmos de uma escola da samba, a Unidos da Guanabara.

Um jovem (Matheus Macena) vagueia pela periferia carioca, em pleno Carnaval. E o faz em espaços ocupados por restos de enormes carros alegóricos. Sua escola, a citada Unidos da Guanabara, está em processo de falência. Assombrado por memórias de seu pai falecido e de um amor perdido, o rapaz segue pela paisagem marcada por imagens de cores fortes, que paradoxalmente, evocam um mundo em ruínas.

Quatro outros personagens transitarão pelo mesmo ambiente. Eles são interpretados pelo craque Márcio Vito (de cabelos longos e ginga aliciadora), pela belíssima “porta-bandeira” Raquel Villar, por Italo Martins e Lux Nėgre.

Com a colaboração de artistas visuais cariocas, interessados no Carnaval carioca como Bragança e Meliande, veremos instalações plásticas de grande beleza inseridas em atmosfera de beleza e caos. Aliás, o diálogo com as artes visuais está na essência do filme. Tanto que ele resultou na versão cinematográfica apresentada em festivais (e premiada na Mostra Caleidoscópio do Festival de Brasília), e em vídeoinstalação imersiva para quatro telas simultâneas.

No terreno do curta-metragem, a mostra competitiva já exibiu cinco curtas. Dois deles se destacaram, “Presépio”, de Felipe Bibian, e “Dona Laudelina e a Felicidade Guerreira”, de Milene Manfredini. Ambos cariocas.

Felipe Bibian comanda, em “Presépio”, um time de sólidos atores (Suzy Lopes e Luciano Vidigal entre eles),  liderado pelo craque Wilson Rabelo. Tudo começa em mais uma festa de Natal em família. As conversas são triviais, aguarda-se a comida natalina e a troca de presentes. Estes, em ritmo de revelações de “amigo oculto”, transcorrem dentro da normalidade, até que um certo “mimo” é entregue a uma criança. O avô, construído com sutileza por Wilson Rabelo, reage. E a festa toma outro rumo.

O Brasil dilacerado pela polarização bolsonarista apresenta-se, dali em diante, em sua complexidade, condensada em apenas 18 minutos. O microcosmo familiar se faz ver, sem gritos ou simplificações, como uma dolorosa (e cotidiana) representação do país.

No debate, integrantes da equipe do filme (o diretor Bibian não pôde comparecer) destacaram comentário do ator Wilson Rabelo (“O Pai da Rita”, “Bacurau”), quando convidado para o papel do avô. Aquele que reage ao deparar-se com o presente paterno entregue ao seu neto, uma criança.

O ator externou sua satisfação em ser convocado para interpretar um homem negro e politizado, oriundo da militância contra a ditadura. Afinal, historicamente, tais papéis sempre foram destinados a homens brancos. E vale lembrar que, para dar mais camadas ao filme, a festa natalina conta com a presença de espaçosa personagem branca, interpretada com graça e sem excessos pela paraibana Suzy Lopes.

WhatsApp-Image-2025-11-23-at-15.17.28-e1763923264295 “Buenos Aires” do agreste, “Cais”, “Presépio “ e “Dona Laudelina” são destaques dos primeiros dias da Mostra de Cinema de Gostoso
Milena Manfredini, diretora de “Laudelina e a Felicidade Guerreira” © MRC

“Laudelina e a Felicidade Guerreira” é fruto de pesquisas da cineasta, artista visual e antropóloga Milena Manfredini, que recria materiais de arquivo e cenas protagonizadas pela atriz Juliana França, que representa a trajetória de Laudelina de Campos Mello (1904-1991), nascida em Poços de Caldas-MG, filha de doméstica. E que exerceria o mesmo ofício. Ao deixar Poços, ela irá radicar-se em Campinas, onde se transformará em liderança trabalhista, inscrevendo seu nome na história do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas.

Manfredini construiu seu filme tendo como ponto de partida livro escrito por Francisco de Lima Neto (Editora Mostarda, Coleção Mulheres Brasileiras) e dissertação de mestrado (“Etnicidade, Gênero e Educação – A Trajetória de Vida de Laudelina de Campos Mello”, de Elisabete Aparecida Pinto). Mas conseguiu, com montagem criativa e sofisticada, construir narrativa cinematográfica de grande beleza visual.

O curta “Pupá”, que forma com “Ressonâncias” a representação potiguar (dentro da competição brasileira de sete títulos), também chamou atenção do público e foi muito aplaudido. Sua diretora, Osani, desenha sintético e envolvente retrato de sua mãe, a apontadora de jogo do bicho, que todos conhecem pelo apelido de Pupá. Ela vive no município de Acari, no Seridó potiguar, de seu ofício (as apostas), de adivinhações (“que bicho vai dar?”), de frequência a festas de forró em companhia de amigas e de conversas com vizinhos, pois todos a conhecem. O filme destacará, claro, os filhos, que ela criou sozinha, abandonada que foi pelos pais de todos eles. Sem esconder o alto astral e apreço por uma cachacinha, Pupá transforma as durezas da vida em desafios que há de superar.

O representante do Amazonas — “Dia dos Pais”, de Bernardo Ale Abinader — une dois atores, pai (Denis Lopes, de “Pssica”) e filho (o cada vez mais conhecido Adanilo, de muitos filmes e telenovelas da Globo). Os dois vivem numa Amazônia, mix de tempo atual-e-futurista, consumida pela fumaça das queimadas. A relação dos dois é tensa. O filho é delicado, pinta as unhas, usa brincos, detalhes que não agradam ao pai (bruto e ausente). Quando este aparece, é para reprimir o filho ou pedir dinheiro emprestado.

Inserções de alta tecnologia voltadas ao mergulho na mente humana serão essenciais ao filme amazonense. O diretor, autor de vários curtas, prepara seu primeiro longa-metragem, “O Barco e o Rio”, aliás título de seu curta mais conhecido. Mas ele avisa que manteve apenas o nome. A trama, já roteirizada e em pré-produção, é nova. O que permanece é sua intenção de revelar o olhar amazônico sobre a cobiçada Amazônia. Um olhar de dentro, marcado pela vivência cotidiana.

“Estamos realizando nossos curtas e, agora, retomando nossa produção de longas-metragens, interrompida por doze longos anos”, lembrou Abinader. Depois de “Enquanto o Céu Não me Espera”, de Christiane Garcia, que participou do Festival de Brasília, ano passado, “muitos e novos longas-metragens virão”, garantiu o realizador.

“Queimando por Dentro”, dos pernambucanos Enock Carvalho e Matheus Farias, tem Samuel, um jovem formado no seio de família evangélico-neopentecostal, como protagonista. Ao abraçar sua identidade queer, ele encontrará no pai um opositor, que o proibirá de dançar na igreja por eles frequentada. A dupla de diretores é a mesma que assina curta inesquecível — “Inabitável”, protagonizado pela grande atriz baiana Luciana Souza, sensação em muitos festivais, cinco anos atrás. “Queimando por Dentro” tem qualidades, mas não tantas quanto “Inabitável”.


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/11/buenos-aires-do-agreste-cais-presepio-e-dona-laudelina-sao-destaques-dos-primeiros-dias-da-mostra-de-cinema-de-gostoso/

Conteúdo importado automaticamente pelo HOST Portal News

🔔 Clique no link, entre em nossa comunidade no WhatsApp do Guia Lacerda e receba notícias em tempo real!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *