“Corpo da Paz”, “Boi de Salto” e “Couraça”, três filmes vindos do Nordeste, movimentam a disputa pelo Troféu Candango

“Corpo da Paz”, “Boi de Salto” e “Couraça”, três filmes vindos do Nordeste, movimentam a disputa pelo Troféu Candango

Foto: “Corpo da Paz”, de Torquato Joel

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

Três filmes nordestinos foram exibidos na quarta noite da mostra competitiva do Festival de Brasília — o longa paraibano “Corpo da Paz”, de Torquato Joel, e os curtas “Boi de Salto”, de Tássia Araújo, do Piauí, e “Couraça”, de Susan Kalik e Daniel Arcades, da Bahia. Em comum os três têm o tema da homoafetividade. E olhares contemporâneos sobre a vida social e cultural do Nordeste.

Torquato revê, pelo ponto de vista de um menino, o Corpo da Paz, programa ligado à Aliança para o Progresso, instituída pelos EUA, para atuar em regiões carentes do Brasil, em especial aquelas afetadas pela seca. Além da parte assistencialista, o programa cuidava de interesses políticos. Em plena Guerra Fria, pregava contra a influência do comunismo internacional.

A diretora piauiense Tássia Araújo, revisita, em “Boi de Salto”, o folguedo do Bumba meu Boi, para recriá-lo como prática de expressão rítmico-plástica de um corpo dissidente.

A dupla baiana mergulha, com “Couraça”, nos momentos finais do cangaço, pós-morte de Lampião, com trio de protagonistas: uma cangaceira, prestes a dar à luz, e dois colegas de bando, amantes homoafetivos, empenhados em levá-la, em segurança, até a casa materna.

“Corpo da Paz” surge como a obra mais complexa e instigante entre os filmes exibidos até agora pelo Festival de Brasília. Segundo longa-metragem de Torquato Joel (o primeiro, “Ambiente Familiar”), o filme soma vivências da infância do cineasta em pequena cidade do interior da Paraíba.

Pela primeira vez, o diretor explora, dentro do minimalismo que lhe é característico, um tema histórico-político. A trama se passa no final da década de 1960, após a decretação do Ato Institucional número 5 (em dezembro de 1968). O realizador, formado no Instituto Varam, na França, dedicou-se, até o curta “Pulmão de Pedra” e “Corpo da Paz”, essencialmente a temas metafísicos.

No palco do Cine Brasília, em apresentação brilhante e sintética, Torquato destacou a proposta de seu filme: “refletir sobre a soberania de nosso território e de nossos corpos”. Lembrou que seu conterrâneo, o cineasta Vladimir Carvalho, costumava dizer que “filmava tudo que o comovia”. Lema que ele adotou, mas com um acréscimo: “filmo tudo que me comove e COMO me comove”.

No palco, com o cineasta, estavam três de seus atores, Fabíola Morais, que interpreta a mãe do protagonista, o menino Teobaldo, Rafael Guedes, que interpreta Lavôr, o filho mais velho, e Vinicius Guedes, paraibano de Catolé do Rocha, que teve a ousadia de interpretar personagem-chave da trama, o estadunidenses Greg, integrante do Corpo da Paz.

Da equipe técnica subiram ao palco o diretor de fotografia Rodolpho de Barros e o montador e colorista Diego Benevides. Também cineastas e nomes da linha de frente do melhor cinema paraibano.

O que se viu na tela do Cine Brasília foi um filme inventivo, sintético (apenas 76 minutos) e capaz de somar, com rara sutileza e sensibilidade, “política e poesia”.

Um desafio que Paulo Martins, o personagem de Glauber Rocha em “Terra em Transe” (interpretado por Jardel Filho) dizia ser impossível. Já que “A poesia e a política são demais para um só homem”.

Não se compara aqui “Corpo da Paz” com nenhum dos inventos barroco-desesperados de Glauber. Até porque Torquato Joel é um realizador minimalista, ocupado com os afetos, com o íntimo. E com temas metafísicos.

A política entrou em seu novo filme bem antes das ações intervencionistas defendidas pelo Governo Trump. O roteiro foi escrito anos atrás e as filmagens se deram no interior da Paraíba, sendo concluídas dois meses antes da pandemia. Sem grana, o jeito foi esperar por recursos, os mais modestos que fossem, capazes de permitir a finalização da obra, o que só aconteceu neste ano em curso.

As filmagens de “Corpo da Paz” — acreditem! — foram realizadas com apenas R$100 mil. E sua finalização, com mais R$20 mil, oriundos da Lei Paulo Gustavo.

E como é possível realizar filme tão complexo e belo, com ótimos atores, dispondo de orçamento tão reduzido?

No debate, Torquato explicou: “com a entrega total de toda a equipe artística e técnica e com pequenos apoios da região onde filmamos”.

Seria o reduzido orçamento responsável pela escolha de um ator paraibano, de Catolé do Rocha, para interpretar um “voluntário da Paz” nascido nos EUA?

Torquato garantiu ter visto em Vinícius Guedes, que domina o idioma inglês e vive mergulhado na cultura norte-americana, um ator capaz de interpretar, com verossimilhança, um personagem anglo-saxão.

Vinicius, por sua vez, descreveu seu processo de trabalho e o tamanho do desafio que enfrentou:

“Comecei do zero. O desafio era tão grande, que me lembrei de Picasso. Dizem que ele pintava seus quadros e os expunha. Porém, ao vê-los expostos, era tomado pela insatisfação. Então, tirava um pincel do bolso e mexia na pintura. De início, Torquato me disse que Greg seria portador de transtorno dissociativo. Fui estudar o que era isso. Aí ele mudou de ideia e me avisou: ‘você será ambíguo, metade sincero no desejo de ajudar os pobres e metade sabotador”. Quanto ao sotaque, eu estudei muito. Escutei gravações de Glenn Greenwald, o jornalista norte-americano que era casado com o deputado Davi Miranda. Estudei sílaba por sílaba da fala dele. Tentei entender a gramática do discurso dele em português. Por isso adotei o ‘Eu vou vir’. Para nós, o ‘vou’ já contém o movimento. Treinei muito e parei de tomar sol, pois Torquato queria que eu tivesse a brancura do personagem. Se vocês acham que convenci como um americano falando português, me dou por satisfeito”.

A sinopse de “Corpo da Paz”, depois de situar a trama “no sertão da Paraíba, em plena ditadura militar, na década de 1960”, chega a seu protagonista, o menino Teobaldo (Giovani Sousa).

Teobaldo enfrenta o embate entre o desejo e a repressão, no momento em que chega à sua pequena cidade, um enigmático pesquisador norte-americano. Ele deverá atuar no Centro de Pesquisas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca).

Torquato Joel é filho de um funcionário do DNOCS. Na infância acompanhou as modestas recepções que a mãe preparava para os norte-americanos que chegavam como integrantes do Corpo da Paz.

Além de distribuir latas de leite em pó, os voluntários se propunham a trazer novas técnicas para melhorar a agricultura no sertão. Mas, em contrapartida, há fortes suspeitas de que, infiltrados pela CIA, os “voluntários” também investigavam riquezas minerais do Brasil (urânio, entre outras terras-raras).

O diretor e roteirista de “Corpo da Paz” contou, no debate no Hotel Ramada, que a ideia do filme nasceu de muitas lembranças, várias delas registradas em fotos, hoje amareladas (fonte de inspiração para a fotografia em preto-e-branco assinada por Rodolpho de Barros).

“Realizei, em 2012, um pequeno audiovisual de divulgação do algodão colorido, variedade muito importante para a Paraíba. Nesse trabalho, conheci Napoleão Beltrão, da Embrapa, um dos mais importantes pesquisadores do algodão. Perguntei a ele o que se passava com o algodão mocó, espécie que fora quase dizimada pela praga do bicudo. Disse a ele que ouvira de populares relatos que atribuíam aos norte-americanos a responsabilidade pela introdução do bicudo nos algodoais paraibanos. O cientista me respondeu que não havia provas de tal incidência, mas que a hipótese de sabotagem não devia ser descartada. O inseto apareceu em Campinas-SP, na década de 1980, e dois meses depois, chegava a Campina Grande, na PB. Um distância territorial imensa para propagação tão rápida. Há que se notar que a paulista Campinas e a nossa Campina Grande contam, ambas, com centros de pesquisa da Embrapa. E recebem pesquisadores norte-americanos. Aliás, as parcerias dessa natureza, no Brasil, se dão desde o Governo Vargas”.

A partir do audiovisual, Torquato aprofundou suas pesquisas sobre os Corpos da Paz e mergulhou em suas memórias de infância. Como tinha poucos recursos para realizar o filme, sintetizou a trama em “quadros” cinematográficos, inspirados, especialmente, nos filmes de Yazujiro Ozu (1903-1963).

Num dos mais poderosos momentos do filme (um “quadro” silencioso) vemos o personagem Gentil (Alex Oliveira), um devoto da cultura norte-americana, se comparando com uma foto de James Dean. Ele aperta o nariz largo para que ele pareça fino como o do ator de “Juventude Transviada”, mexe em outras partes do rosto. E a trilha sonora se expande no ritmo do jazz.

O diretor de fotografia Rodolpho de Barros contou que a sequência foi construída com apenas dois planos. Um, com os gestos de Gentil que busca possíveis semelhanças com James Dean, e outro que revela o posicionamento do personagem paraibano diante do espelho. “Como não tínhamos recursos para uma produção cara e de época”, ponderou, “fomos obrigados a buscar soluções mais simples e criativas”.

Gentil — verá o espectador — se colocará como um serviçal de Greg, servindo de intermediário entre o gringo e os camponeses, em especial com uma plantadora de algodão, lavoura que o norte-americano visitará com frequência”.

Quem quiser saber mais sobre os Corpos da Paz, poderá assistir, além do filme de Torquato Joel, ao longa documental pernambucano “Em Nome da América”, de Fernando Weller, vencedor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2017. Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Weller mergulhou em arquivos audiovisuais para construir um épico que, entre outros temas, mostrou a infiltração da CIA em programas assistenciais criados e bancados pelo Governo Kennedy. Cabia aos “Voluntários da Paz” atuar em trabalhos comunitários e agrícolas, em pequenas cidades assoladas pela seca.

fotos-festcine-39fe-5 “Corpo da Paz”, “Boi de Salto” e “Couraça”, três filmes vindos do Nordeste, movimentam a disputa pelo Troféu Candango
“Boi de Salto”, de Tássia Araújo

O curta piauiense, de título almodovariano, “Boi de Salto”, começa com a famosa trama que deu origem ao Bumba meu Boi. Os lavradores Catirina e Chico esperam o primeiro filho. Ela sente desejo de comer língua de boi. Para satisfazer o desejo da mulher, o marido mata um boi do patrão e retira a língua, que será comida pela esposa. O patrão descobre e enfurecido, sai em busca de Chico.

No filme, o casal consegue fugir para Teresina. Há uma elipse temporal e veremos um jovem apaixonado pelo folguedo do Bumba meu Boi. Ele frequenta um dos mais importantes grupos que revivem, ao som dos tambores, a saga de Catirina e Chico. O rapaz se chama Abdias, é homoafetivo, e deseja dançar o “Boi” com vistosas botas de vidrilhos prateados. O mestre do Boi não aceita. Se o rapaz quiser dançar no Imperadores da Ilha, terá que seguir a tradição.

O rapaz tudo fará para conseguir realizar seu sonho, dançar sobre tacones lejanos. Mesmo que, para tanto, tenha que criar novos procederes, uma nova tradição.

Durante o debate, Tassia Araújo, que assina o roteiro de “Boi de Salto”, e sua diretora de fotografia, Maria Navarro, ouviram dois questionamentos. Primeiro, o abandono dos pais de Abdias (só a mãe voltará a ser vista fugazmente). Segundo, a falta de elementos que tornassem mais clara a relação do jovem Abdias com a história que abre a narrativa (o desejo da mulher grávida comer língua de boi).

A diretora contou que haviam filmado mais sequências com pai e mãe do menino, caçados pelo coronel, o dono da fazenda e do boi. E que permitiriam que se entendesse, com maior clareza, a filiação de Abdias. “Decidimos resumir a narrativa em 14 minutos, foi uma decisão muito pensada”. Ela contou que tais questionamentos já foram dirigidos a ela e sua equipe e que muitos sugerem que o roteiro seja ampliado e dê origem a um longa-metragem.

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“Couraça”, de Susan Kalik e Daniel Arcades

A equipe que representou “Couraça” no debate formou-se com os dois diretores, Susan Kalik e Daniel Arcades, e a diretora de arte Carol Tanajura (do festejadíssimo “Oeste Outra Vez”). O trio exalou simpatia, em especial Arcades, também roteirista e protagonista do filme (no papel do cangaceiro Zé Pavão). Ele contracena com Antônio Marcelo (Baía) e Laís Machado (a cangaceira Dezinha).

O ator fez questão de contar que ofereceu uma participação especial à atriz-bailarina Ana Paula Bouzas, artista de muitas novelas e séries, em troca de “um modesto cachê”. Ela topou, pois encantou-se com o projeto.

Bouzas foi submetida a processo de maquiagem que a envelheceu para que interpretasse a mãe da cangaceira Dezinha. E avisou a Arcade que, convicta, entrou para o bando de “Couraça”. Quer fazer novos trabalhos com a trupe.

O roteiro do filme nasceu de muita pesquisa. “Somos atores de teatro” — contou Arcades — “e todos os nossos espetáculos são frutos de imensas pesquisas”. O mesmo se passou com o filme, de 19 minutos.

“Queríamos, Susan e eu, contar a história de um casal gay no cangaço. O grande Luiz Mott conta que Lampião tinha certa condescendência com a presença de gays no seu bando. Embora fosse machista. Lemos muito e quisemos estabelecer um elo entre histórias contadas e histórias ocultadas. E, claro, também inserir negações, transgressões, nas histórias correntes. Foi o que fizemos, mas tudo que está no filme é fruto de pesquisa. Inclusive a presença de ‘Último Desejo’, de Noel Rosa”.

“Queríamos saber que música fazia sucesso no rádio, em 1938. ‘Último Desejo’ era o maior hit de então. Além do mais, seus versos dizem tudo que queremos dizer em “Couraça”. Por sorte, a composição de Noel já caiu em domínio público, o que facilitou bastante”.


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/09/corpo-da-paz-boi-de-salto-e-couraca-tres-filmes-vindos-do-nordeste-movimentam-a-disputa-pelo-trofeu-candango/

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