Festival de Brasília exibe “Aqui Não Entra Luz”, longa sobre trabalhadoras domésticas, e os curtas “A Pele do Ouro”, de Roraima, e “Cantô meu Alvará”, de MG

Festival de Brasília exibe “Aqui Não Entra Luz”, longa sobre trabalhadoras domésticas, e os curtas “A Pele do Ouro”, de Roraima, e “Cantô meu Alvará”, de MG

Foto: “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

A quinta noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro exibiu dois filmes mineiros — “Aqui Não Entra Luz”, longa documental sobre trabalhadoras domésticas, realizado por Karol Maia, e o curta “Cantô meu Alvará”, de Marcelo Lin. O programa completou-se com um curta vindo de Roraima, “A Pele do Ouro”, que mobilizou duas diretoras, a brasileira Marcela Ulhoa, e a venezuelana, radicada no Brasil, Yare Perdomo.

Fortes aplausos foram dirigidos ao longa mineiro, que levou ao palco, além de sua diretora, os produtores Paula Kimo e Vítor Dias e a pesquisadora Isabella Santos. Levou, também, três de suas personagens (as trabalhadoras Mãe Flor, do Maranhão, Rosarinha, de Minas Gerais, e Miriam Mendes, de São Paulo). Sobre Miriam, saberemos, ao longo da narrativa, que ela é mãe da cineasta, e que foram necessários muitos esforços até que ela aceitasse participar de “Aqui Não Entra Luz”.

Karol Maia realizou seu documentário por longos oito anos. Numa primeira etapa, ela registrou testemunhos de seis domésticas oriundas de diversas unidades da Federação. E o fez escorada em preocupação essencial à gramática constitutiva do filme: revelar, pelas memórias e vivências das trabalhadoras domésticas, os rastros da escravidão inscritos nos nossos espaços arquitetônicos. Seja nas senzalas de propriedades rurais fluminenses do Vale do Paraíba, seja nas fazendas de Minas ou nos apartamentos cariocas e paulistas, com seus pequenos “quartinhos de empregada”.

Por isso, o filme se chama “Aqui a Luz Não Entra”. Ou seja, nos cubículos dedicados às “serviçais do lar”, a luz é rarefeita. A pesquisadora Isabella Santos contou que “uma trabalhadora, ao apresentar seu cômodo de dormir, chamou atenção para um aparelho de ar condicionado, que fazia parte de sua habitação, mas não para arejá-la”. Muito pelo contrário, “já que a saída de ar se dirigia em sentido oposto. A ela restava o calor produzido pela engrenagem mecânica”.

O registro dos testemunhos que compõem o filme se deu com trabalhadoras de quatro estados brasileiros, aqueles que mais receberam escravizados: a Bahia, representada por Marcelina Martins; Minas Gerais, por Rosarinha; o Rio de Janeiro, por Cristiane Graciano, e o Maranhão, por Mãe Flor. São Paulo viria a completar o quadro em etapa posterior.

Depois da pandemia, que praticamente interrompeu as filmagens, Karol Maia obteve novos recursos (o orçamento do filme é de R$800 mil) e pôde, presencialmente, acompanhar a montagem (iniciada e elaborada, à distância, por Cesar Gananian, e finalizada por Fer Krajuska).

Foi na segunda etapa do filme que Karol conseguiu convencer a mãe a participar dele. Miriam Mendes começara sua vida profissional prestando serviços a empresas diversificadas. Ao ser demitida, teve que recorrer à prestação de serviços domésticos. Mas nunca dormiu num “quartinho de empregada”, pois tinha seu lar. Hoje, ela presta serviços de faxina a um grande escritório, composto de múltiplas salas.

Karol Maia contou, no debate de “Aqui Não Entra Luz”, que “a mãe não queria participar do filme de jeito nenhum”. Seguia lacônica, sem vontade de evocar suas memórias no ofício de trabalhadora doméstica. Só aceitou fazê-lo, depois de “muita insistência” e da garantia da filha de que “elas apareceriam sempre juntas”.

A documentarista lembrou que ela mesma “tinha dúvidas se deveria aparecer no filme, seja ao lado da mãe, seja como narradora”. Resolveu, depois de muito diálogo com sua equipe, que deveria, sim, estar presente na narrativa. Afinal, muito da confiança, que conquistara junto às suas personagens, vinha do fato de ser ela, também, filha de uma trabalhadora doméstica.

“Aqui Não Entra Luz” tem o que Eduardo Coutinho sempre buscou em seus filmes: personagens que sabem narrar suas histórias. O diretor de “Jogo de Cena” não se cansava de lembrar que não bastava encontrar pessoas que haviam vivido grandes experiências. O que um cineasta deve buscar (e ele buscava) são pessoas que “sabem narrar suas vivências”. Karol encontrou, com ajuda da pesquisadora Isabella Santos, quatro mulheres carismáticas, dotadas do poder da fabulação (aqui sem o ingrediente delirante da invenção, já que nos deparamos, ao longo de sintéticos 80 minutos, com histórias vivenciadas).

Além de desenharem um impressionante quadro de suas “vidas profissionais” iniciadas aos dez ou onze anos — quando trabalhavam em troca de comida e cama, pois eram tratadas como “agregadas da família” —, as domésticas nos lembrarão o processo de segregação que as acompanhou, em cada casa onde exerceram seu ofício.

Até que chegamos ao testemunho da baiana Marcelina Martins, hoje líder trabalhista, que conhece em detalhes a “Lei das Domésticas” (promulgada em primeiro de junho de 2015). E que, dotada de significativo conhecimento do assunto, é capaz de discorrer sobre a questão da moradia. Muitas domésticas continuam dormindo em “quartinhos de emprega”, por não terem casa própria. Por isso, a categoria profissional lutou para que o “Minha Casa, Minha Vida”, se ocupasse da situação específica delas.

O filme encontra na busca da subjetividade de suas personagens sua maior força. Histórias de dor, de muito sofrimento, são registradas. Mas há risos, alegria e confissões. E elas aparecerão na tela muito arrumadas, com seus melhores vestidos, e maquiadas. Mãe Flor dirá que “vem de uma família de negros luxuosos”. Marcelina Martins exibirá, orgulhosa, a bela cortina que adorna sua casa, comentará “a cor neutra, que combina com tudo”, e a geometria de “cada prega feita no tecido”. Uma das trabalhadoras contará que, com o primeiro salário — ganho depois da fase de “agregada que trabalhava em troca de comida e cama” —, mandou “parte do dinheiro para a mãe” e com o resto comprou “uma saia Lee, que tanto desejava, e umas blusinhas”.

“Aqui Não Entra Luz” joga muitas luzes sobre a história de Brasil, vista pelas relações estabelecidas, ao longo dos séculos, entre patrões brancos e seus empregados, em especial os afro-brasileiros.

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“A Pele do Ouro”, de Marcela Ulhoa e Yare Perdomo

O curta de Roraima — “A Pele de Ouro”— conta a história de Patri, moça vinda, como imigrante, da Venezuela, para viver na fronteira entre o país hispano-americano e o Brasil. Aqui ela espera encontrar emprego e melhorar de vida. Frente às dificuldades encontradas, ela vai exercer o mais antigo ofício do mundo (a prostituição). Primeiro nas ruas da cidade, depois no garimpo. Quem sabe lá conseguirá se assenhorar de quantia razoável do ouro da Amazônia?

Enquanto vive tais experiências, Patri escreve um diário no qual registra fatos e reflexões sobre sua vida. A partir desse diário, Ulhoa e Perdomo construíram o roteiro do filme que definem como “um documentário”. Melhor seria defini-lo como híbrido. Até como ficção, já que a narrativa é construída de forma estilizada e com recursos metafóricos explícitos (como um banho com a lama gerada pelo insano extrativismo garimpeiro).

Patri não tem seu nome civil revelado nos créditos do filme, nem seu rosto é mostrado aos longo dos 15 minutos que o compõem. Ela é representada por partes de seu corpo, tanto no ponto de prostituição, na cidade, quanto no garimpo. Um corpo em movimento. Inclusive em cena de sexo com um garimpeiro, numa rede.

Narradora de fragmentos de sua vida, Patri lembrará que, na cidade, as prostitutas encontram, ao menos, um quarto e uma cama para a prática sexual. No garimpo, nem um reles catre. A rede serve como único leito possível.

“Cantô meu Alvará”, curta de Marcelo Lin, é fruto do cinema periférico de BH, a capital mineira. Como contou no palco do Cine Brasília, ele faz cinema com parentes, amigos, pouca grana e muita gana. Quer retratar seu território, a favela, com seus problemas, sonhos e alegrias. Dessa vez, ele trabalha com três mulheres-protagonistas. Lara, que tem medo, Nayara, cheia de coragem e ousadia, e Fernanda, dona de muitas ideias. Juntas, elas somam seus sonhos.

Marcelo Lin é parceiro de Rodrigo Meirelles e de Marco Antônio Pereira, cineasta de Cordisburgo, diretor de muitos curtas, na produtora Abdução Filmes. Coube a Lin produzir o primeiro longa de Pereira (“Paisagem de Inverno”). Agora, ele finaliza seu próprio longa-metragem, “Sobrevivente de Guerra”.

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“Cantô meu Alvará”, de Marcelo Lin

FLASHES CANDANGOS

. NUNO LEAL MAIA REENCONTRA OS “LOUCOS POR CINEMA” — A Mostra Brasília, fruto de parceria entre o Festival de Brasília e a Câmara Legislativa do DF, está bombando. Com sessões sempre lotadas e movimentados debates (realizados no Cine Brasília, antes da competição nacional). Na terça-feira, um ator, o santista Nuno Leal Maia, que já participou outras vezes do festival (com “Ato de Violência”, de Eduardo Escorel, e com “Louco por Cinema”, de André Luiz Oliveira), subiu ao palco para apresentar, junto com a diretora Carina Bini, o longa “Mil Luas”. Além dele estavam no palco, a protagonista Thaia Perez e dezenas de integrantes da equipe artística e técnica. Rodado em cidade histórica goiana, que parece uma mistura de Pirenópolis com Goiás Velho, o filme conta a história de Chiara, descendente de italianos, que chega aos 80 anos e começa a enfrentar alguns contratempos na preparação de suas famosas receitas. Ela mantém um tradicional restaurante. Dívidas, porém, tiram o sossego dela e de sua filha, administradora financeira da casa. Para complicar, a clientela é cada vez mais diminuta. Chiara não quer se aposentar. Passa as horas de lazer em sua lambreta, muitas vezes com a filha de seu ajudante de cozinha. Ou no banco da praça ao lado de um galanteador, papel de Nuno Leal Maia, como ela, de origem italiana. O filme foi fotografado em cores vibrantes e pretende dialogar com o público. Conseguirá? Dele, há que se destacar pelo menos uma sequência memorável. Aquela em que os personagens de Nuno e Thaia Pérez assistem ao filme “Louco por Cinema”, na tela do histórico Cine Pireneu. Nuno se vê na tela, na pele do “louco” Lula, protagonista do longa-metragem de André Luiz. No final da sessão, pelos menos três dos loucos do filme, vencedor do Festival de Brasília em 1994, se abraçaram: o cantor, compositor e ator Renato Mattos, o ator e técnico de futebol Nuno Leal Maia e o criador dos personagens deles dois, o baiano-candango André Luiz “Meteorango Kid” Oliveira.

. BELMONTE VAI “ASSALTAR” CINEMA DE VILLANOVA ARTIGAS — O cineasta brasiliense José Eduardo Belmonte está a mil. Participa do Festival de Brasília com seu penúltimo longa, “Assalto à Brasileira”. E o faz na companhia dos atores Paulo Miklos (“O Invasor”), Robson Nunes (“Boleiros”), Christian Malheiros (“Sócrates”) e Matheus Macena, este revelado no filme “Transe”, de Anna Pinheiro Guimarães e Carol Jabor. Daqui, ele segue para Londrina, onde vai realizar, dia 26 próximo, a première paranaense do “Assalto à Brasileira”, que teve sequências rodadas no grande município sulista. O fará no nobilíssimo e cult Cine Ouro Verde, desenhado pelo arquiteto curitibano Villanova Artigas (1915-1985), célebre professor da USP, que fez história com suas criações arquitetônico-urbanísticas. E tem mais, depois de Brasília-Londrina, Belmonte vai participar da Mostra CineBH, que promovera sessão especial do “Assalto…”. Em seguida, ele concorrerá ao Troféu Redentor, no Festival do Rio. Com filme novíssimo, zero bala: “Quase Deserto”. Trata-se de ficção rodada em Detroit, nos EUA. Ninguém detém o mais incansável dos “Remadores de Ben-Hur” do cinema brasileiro.

. FICCIONISTAS PARAIBANOS SE RECONCILIAM COM O DOCUMENTÁRIO — O crítico e pesquisador André Dib, estudioso de nossa história cinematográfica (em especial a nordestina), destaca testemunho do cineasta paraibano Arthur Lins durante debate do filme “O Nordeste sob a Carvana Farkas”, fruto de parceria com o cearense André Moura Lopes. O longa documental integra o segmento Sessões Especiais do Festival de Brasília. Depois de sua exibição, Lins contou que sua geração fizera questão de realizar curtas e longas ficcionais. Não sequenciar o projeto que consagrou o cinema documental paraibano. Ele mesmo ganhou o prêmio principal do Festival Aruanda, de João Pessoa, com o longa “Desvio”, 100% ficção. Agora, participa do festival candango com longa documental que dialoga com o cinema da trupe do húngaro-brasileiro Thomaz Farkas, que, na década de 1960, produziu dezenas de documentários interessados em  “mapear o Brasil, em especial o Nordeste”. Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares são os autores dos documentários com os quais Lins e Moura dialogam. Nessa “pacificação” dos espíritos da moçada da ficção paraibana, que recusou a herança de Linduarte Noronha, Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas, surge outro exemplo paradigmático. “A cineasta Ana Bárbara” — conta André Dib — “está preparando longa documental que dialogará com ‘Sob o Céu Nordestino’, de Walfrido Rodriguez, realizado na década de 1920. Do filme pioneiro de Walfrido sobraram 24 minutos. Ana Bárbara os revisitará em ‘Sob o mesmo Céu’”.

. PELA REGULAÇÃO DO STREAMING — Nomes dos mais variados do cinema brasileiro, aqueles que lutam pela implantação de políticas de fomento e novas legislações que sirvam ao desenvolvimento de nosso audiovisual estão reunidos em Brasília. José Joffily, Gonzaga De Luca, André Sturm, entre outros, discutem, na Conferência do Audiovisual, temas como a regulamentação (taxação) das plataformas de streaming, as mudanças trazidas pela IA (Inteligência Artificial) e os direitos autorais dos realizadores. Ao final, eles devem redigir a Carta de Brasília.


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/09/festival-de-brasilia-exibe-aqui-nao-entra-luz-longa-sobre-trabalhadoras-domesticas-e-os-curtas-a-pele-do-ouro-de-roraima-e-canto-meu-alvara-d/

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