Festival de Brasília premia “Futuro Futuro”, “Laudelina”, “Maré Viva” e “Três” em longa noite de 54 troféus

Foto: Equipe de “Futuro Futuro”, de Davi Pretto © Raquel Camargo
Por Maria Rosário Caetano, de Brasília (DF)
“Futuro Futuro”, ficção distópica do gaúcho Davi Pretto, conquistou o Troféu Candango de melhor longa-metragem da quinquagésima-oitava edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
A escolha do júri oficial não coincidiu com a da Crítica, que preferiu o cearense “Morte e Vida Madalena”, de Guto Parente, nem com a do Público, que optou pelo thriller, com ingredientes de comédia, “Assalto à Brasileira”, produção paulista dirigida por José Eduardo Belmonte.
O júri, composto pelos cineastas Lúcia Murat, Vera Egito e Jimi Figueiredo e pelos atores Alessandra Negrini e Fabrício Boliveira, concentrou seus prêmios técnicos no longa paraibano “Corpo da Paz”, de Torquato Joel, e distribuiu, com excessos de boa vontade, troféus Candango para cinco dos sete concorrentes.
Curioso que o quinteto de jurados tenha destacado as qualidades técnicas da ficção paraibana, enfileirando quatro troféus Candango e, depois, ignorando o filme nas categorias principais. “Corpo da Paz” foi, sem dúvida, o que de melhor se exibiu na mostra competitiva, junto com “Futuro Futuro”.
Prêmios técnicos, como os oferecidos a longa paraibano costumam ser atribuídos a produções realizadas com muita grana e perícia técnica, mas sem traços autorais. O longa de Torquato foi produzido com míseros R$120 mil e constitui-se como narrativa feita de lembranças, afetos e subjetividades. Foi o grande injustiçado da noite.
O documentário “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia, que registra memórias de cinco trabalhadoras domésticas, foi reconhecido pela melhor direção. Outro bom momento do festival.
“Assalto à Brasileira”, destacou-se pelas interpretações de Murilo Benício (melhor ator) e Christian Malheiros (melhor coadjuvante). “Quatro Meninas”, de Karen Suzane, foi supervalorizado. Recebeu o prêmio de melhor atriz, para Dhara Lopes, melhor coadjuvante (Maria Ibraim), além do Prêmio Especial do Júri.

O melhor curta-metragem da competição brasileira foi “Laudelina e a Felicidade Guerreira”, da carioca Milena Manfredini, tornando-se um dos filmes mais premiados da noite. Foi eleito o melhor pelo júri oficial e pela Crítica e somou troféus de melhor montagem a dois prêmios especiais (o Zózimo Bulbul e o de Ação Afirmativa).
O júri dessa categoria (filmes curtos) destacou, também, o mato-grossense “Replika”, de Piratá Waurá e Heloísa Passos, filmado no Xingu. E laureou a atriz Laís Machado, do baiano “Couraça”, um ‘nordestern’ com cangaceiros homoafetivos, dirigido por Susan Kalik e Daniel Arcades. Este filme foi, também, o eleito do Público e levou o Troféu Canal Brasil, com robusta premiação em dinheiro e garantia de exibição na tela do canal dedicado ao cinema brasileiro.
Entre os 12 concorrentes, pelos menos dois títulos, de significativas qualidades, acabaram ignorados — o paranaense “Dança dos Vagalumes”, de Maikon Nery, que impregnou sua narrativa social (a luta pela posse da terra) com poesia e luz nas trevas, e o brasiliense “Fogo Abismo”, de Roni Sousa, narrativa de duro memorialismo, perturbado pelo calor de ardentes chamas.
“Uma Baleia Pode Ser Despedaçada como uma Escola de Samba”, dos cariocas Marina Meliande e Felipe Bragança, e o goiano “Atravessa minha Carne”, de Marcela Borela, foram reconhecidos como os melhores da mostra Caleidoscópio, dedicada a longas que desafiam as convenções. O primeiro recebeu o Prêmio Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) e o segundo, o Prêmio Jean-Claude Bernardet, atribuído por Júri Jovem, composto por estudantes da UnB.
A Mostra Brasília consagrou o longa documental “Maré Viva, Maré Morta”, de Cláudia Daibert, escolhido pelo júri oficial e pelo popular, e muito aplaudido a cada novo reconhecimento. O filme, realizado no Parque de Abrolhos e no Atol das Rocas, dois parques marinhos, verdadeiros santuários, é de beleza arrebatadora e aliciante. E ganha força pelo discurso apaixonado de duas mulheres. Bena e Zélia cuidam da fauna e da flora dos paraísos ecológicos que escolheram como morada. Vigiam o mar, a terra firme e o ar. Incluindo os aviões que invadem os céus (azuis como o mar), que encapam o território e perturbam a vida das aves.
O público, que lotou o Cine Brasília na noite de sua primeira exibição, o sacramentou como o melhor (no voto popular) e o aplaudiu calorosamente na Noite do Candangos (e dos Troféus da Camara Legislativa do DF).
O melhor curta brasiliense foi “Três”, de Lila Foster. Escolha certeira. Protagonizado por Gabriela Corrêa (de “Virgínia e Adelaide”, de Jorge Furtado) e por João Campos (ator e cineasta), o filme começa com um ménage à trois e segue em seu surpreendente registro da vida cotidiana de um casal nada ordinário. Em relações triangulares (seja com parceiros ou com a filha plena de energia).
A Noite dos Candangos foi longa. Durou mais de três horas. Mesmo com a habilidade das duas apresentadoras — as atrizes Bárbara Colen e Maeve Jinkings, que tudo fizeram para dar ritmo à cerimônia — não houve jeito. Havia 54 prêmios e menções honrosas para serem entregues. Para termos de comparação: o Festival de Gramado entregou 15 prêmios em sua compacta Noite dos Kikitos, pois promovera, dias antes, mais duas festas de distribuição de troféus. O Oscar entrega, anualmente, 24 estatuetas.
Por sorte, os agradecimentos — mesmo pecando por falta de originalidade, ousadia e humor — não foram longos. Torquato Joel, quando chamado ao palco para receber, em nome de integrantes de sua equipe, quatro prêmios seguidos, pautou-se pela objetividade nos agradecimentos.
A jovem Milena Manfredini, diretora de “Laudelina e a Felicidade Guerreira”, subiu ao palco para receber cinco prêmios. Com elegância e discurso articulado, definiu-se como fruto de políticas públicas, “os Pontos de Cultura da gestão Gilberto Gil”, destacou suas origens na Baixada Fluminense, “filha, neta e sobrinha de domésticas”, e destacou, em cada instante, tributo ao ator e cineasta Zózimo Bulbul. Que ela definiu como “o pai do cinema negro brasileiro”.
O discurso mais contundente da noite veio do cineasta Evaldo Mocarzel. Ele exibiu seu longa documental “Sérgio Mamberti, Memórias do Brasil”, em caráter hors concours, e acabou reconhecido pelo CPCB (Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro) com o Prêmio Marco Antônio Guimarães. Que destaca filmes que façam bom (e criativo) uso de materiais de arquivo.
Mocarzel dirigiu seu discurso, muito articulado, aos responsáveis pelos “exorbitantes preços cobrados por direitos de uso de arquivos de imagens”. Antes, fez questão de dedicar “o prêmio inesperado” ao colega Henrique Dantas, da Bahia, que também construiu seu longa documental, “Anti-Heróis do Udigrúdi Baiano”, com materiais depositados em arquivos. Para, em seguida, indagar: “até quando viveremos esse calvário provocado pela ganância mercantilista dos proprietários de arquivo? Como nós, produtores independentes, podemos pagar (pela aquisição de direitos) valores que nos equiparam a poderosas ‘big tech’ do streaming?”
Houve outras manifestações políticas ao longo da noite. Não muitas. Mas significativas. Primeiro, a “Carta de Brasília”, lida por Maeve e Bárbara, cujo ponto nevrálgico concentra-se na luta pela regulação do streaming. Palavra de ordem que o cearense Guto Parente reafirmou, ao agradecer o Prêmio da Crítica. Ao final, ele avisou: “sem a regulação do streaming, se nada for feito, vamos virar uma colônia do Homem Laranja” (Donald Trump, claro!).
Sobre “Futuro Futuro”, quarto longa-metragem de David Pretto (“Rifle”, “Castanha” e “Continente”), há que se registrar sua natureza de filme inquieto, ousado e disposto a trilhar caminhos inesperados. A trama se constrói num futuro próximo.
A Inteligência Artificial avança, célere. Um homem, K (Zé Maria Pescador), de 40 anos, é vítima de síndrome neurológica. Sem memória, ele encontra abrigo num pequeno quarto, onde vive um homem solitário, Silvio (João Carlos Castanha). Tudo se passa na periferia de uma grande cidade tomada por chuvas constantes (qualquer ligação com as enchentes que causaram morte e desespero em Porto Alegre não será mera coincidência).
O registro desse ambiente, marcado pela pobreza, se faz em cores. E nele destaca-se a professora Joana (Carlota Joaquina), que ministra curso sobre a síndrome neurológica que perturba K. Ela disponibiliza, ao desmemoriado, um viciante dispositivo de IA, que permite, a ele, buscar caminhos que o levem, quem sabe, a encontrar lugar possível naquele mundo convulsivo.
Em outra parte da cidade, registrada em vermelho, vemos uma cidade altamente tecnológica, isolada dos pobres, criada no moldes de Dubai ou Miami. No debate do filme, Pretto contou que ele e seu fotógrafo Leonardo Feliciano adotaram “a estética da publicidade” para esta parte de sua distopia. No começo, filmaram em espaço real (a Fecomercio, instituição empresarial gaúcha), mas não puderam retornar ao mesmo cenário depois da tragédia das enchentes. O projeto do filme foi reimaginado e optou-se pela Inteligência Artificial (na criação dos ambientes em vermelho).
Davi Pretto não documentou as enchentes. Nem criou seu filme a partir delas. O roteiro fôra escrito bem antes. E se ambientava em território sob chuvas constantes. Para o cineasta, seria “abjeto” ilustrar o filme com imagens documentais do que Porto Alegre e outras cidades do Rio Grande do Sul viveram. Seu cinema, intencionalmente disruptivo, não recorre “a imagens que sirvam como provas”, nem “fetichizam” o real.
O diretor de “Futuro Futuro”, que havia participado da competição brasiliense, nove anos atrás, com seu primeiro longa (“Rifle”, premiado pela Crítica e pelo roteiro), entra, agora, para a galeria de vencedores do mais tradicional e longevo festival do país.
Por fim, perguntas que não querem calar: por que os premiados com os troféus Candango e Câmara Legislativa do DF não subiram ao palco para a tradicional foto coletiva, tão esperada e cultivada em festivais, que vão de Gramado a Tiradentes, passando por dezenas de outros? Para o novo comando do Festival de Brasília, a produção de imagem do conjunto dos laureados é algo a se evitar? Mainstreaming? Por que?
Confira os vencedores:
LONGA-METRAGEM BRASILEIRO
. “Futuro Futuro”, de Davi Pretto (RS) – melhor filme (júri oficial), roteiro (Davi Pretto), montagem (Bruno Carboni), menção honrosa para o ator Zé Maria Pescador
. “Aqui Não Entra Luz”, de Karol Maia (RJ) – melhor direção, Prêmio Zózimo Bulbul, da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro)
. “Assalto à Brasileira”, de José Eduardo Belmonte (SP) – melhor filme pelo júri popular, ator (Murilo Benício), melhor coadjuvante (Christian Malheiros), Troféu São Saruê do Correio Braziliense (para Belmonte)
. “Quatro Meninas”, de Karen Suzane (RJ) – melhor atriz (Dhara Lopes), coadjuvante (Maria Ibraim), Prêmio Especial do Júri
. “Corpo da Paz”, de Torquato Joel (PB) – melhor fotografia (Rodolpho de Barros), direção de arte (Romero Sousa), trilha sonora (Haley Guimarães), edição de som (Bruno Alves)
. “Morte e Vida Madalena”, de Guto Parente (CE) – Prêmio da Crítica (Abraccine)
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO
. “Laudelina e a Felicidade Guerreira”, de Milena Manfredini (RJ) – melhor filme do júri oficial, Prêmio da Crítica (Abraccine), montagem (Milena Manfredini), Prêmio Zózimo Bulbul (APAN), Prêmio Temática Afirmativa Codipir (Conselho Distrital de Promoção da Igualdade Racial)
. “Replika”, de Piratá Waurá e Heloísa Passos (MT) – melhor direção, edição de som (O Grivo e Lucas Caminha)
. “Couraça”, de Susan Kalik e Daniel Arcades (BA) – melhor atriz (Laís Machado),
Premio do Júri Popular, Prêmio Canal Brasil
. “A Pele de Ouro”, de Marcela Ulhoa e Yare Perdomo(RR) – melhor roteiro (Patri, Marcela Ulhôa, Daniel Tancredi e Yare Perdomo), fotografia (Daniel Tancredi)
. “Ajude os Menor”, de Janderson Felipe e Lucas Litrento (AL) – melhor ator (para os quatro intérpretes dos jovens trabalhadores da construção civil), trilha sonora (Paulo Gama)
. “Safo”, de Rosana Urbes (SP) – melhor direção de arte (Rosane Urbes)
. “Cantô meu Alvará”, de Marcelo Lin (MG) – menção honrosa do Prêmio Zózimo Bulbul (APAN)
MOSTRA CALEIDOSCÓPIO (Brasil)
. “Uma Baleia Pode Ser Despedaçada como uma Escola de Samba”, de Marina Meliande e Felipe Bragança (RJ): melhor filme pelo Júri Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema)
. “Atravessa Minha Carne”, de Marcela Borela (GO) – Prêmio Jean-Claude Bernardet de melhor filme do Júri Jovem UnB
MOSTRA BRASÍLIA (Troféu Câmara Legislativa do DF)
LONGA-METRAGEM:
. “Maré Viva, Maré Morta”, de Cláudia Daibert – melhor filme pelo júri oficial, Prêmio do Júri Popular, edição de som (Olívia Hernández), Prêmio Sesc DF
. “Vozes e Vãos”, de Edileuza Penha e Edymara Diniz – melhor direção
. “A Última Noite da Rádio”, de Augusto Borges – melhor ator (Leonardo Vieira Telles), direção de arte (Douglas Queiroz)
CURTA-METRAGEM:
. “Três”, de Lila Foster – melhor curta pelo Júri Oficial
. “Rainha”, de Raul de Lima – Prêmio do Júri Popular, melhor montagem (Raul de Lima), trilha sonora (C-Afro Brasil), Prêmio Sesc
. “Dois Turnos”, de Pedro Leitão – melhor fotografia (Elder Miranda Jr), Prêmio Sesc DF
. “Terra”, de Leo Bello, e “Notas Sobre a Identidade”, de Marisa Arraes — melhor atriz (Tuanny de Araújo, pelos dois filmes)
. “O Cheiro do seu Cabelo”, de Clara Maria Matos – melhor roteiro (Clara Maria Matos), Prêmio Sesc DF
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