Mostra premia filmes humanistas do Iraque, Macedônia e Egito, todos estrelados por crianças e jovens

Mostra premia filmes humanistas do Iraque, Macedônia e Egito, todos estrelados por crianças e jovens

Foto: “The President’s Cake”, de Hasan Hadi, foi o grande vencedor da Mostra © Mario Miranda Filho/Agência Foto

Por Maria do Rosário Caetano

O júri oficial da quadragésima-nona edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo premiou quatro dos doze concorrentes ao Troféu Bandeira Paulista. O grande vencedor foi o iraquiano “The President’s Cake”, de Hasan Hadi, indicado ao Oscar de melhor filme internacional. Mesmo caso de “Feliz Aniversário”, de Sarah Goher, representante do Egito, que teve sua protagonista, a menina Doha Ramadan, destacada por sua atuação.

Mais dois troféus foram atribuídos pelo quinteto de julgadores. O Prêmio Especial do Júri coube ao macedônio “DJ Ahmet”, de Georgi M. Unkovski, e criou-se menção honrosa para “A Luta”, do espanhol José Alayón.

Os quatro premiados reafirmam percepção de Ismail Xavier, professor emérito da USP, que, em ensaio sobre a presença de personagens ressentidos no cinema, lembrou que, em tempos desprovidos de utopias, as crianças constituem “o universal que nos resta”. No mundo contemporâneo só reconhecemos “na figura do infante, espécie de reserva do que ainda pode gerar compaixão, encarnar valores, prometer”.

Os longas reconhecidos  com o Troféu Bandeira Paulista têm crianças e adolescentes como protagonistas. No filme iraquiano, uma menina pobre é obrigada a arrumar, num país em guerra, ingredientes para fazer um bolo para o presidente Sadam Hussein. Na ficção egípcia, outra garota pobre sonha apagar uma velinha do bolo de aniversário da filha da patroa. No macedônio, um adolescente de 15 anos enfrenta, ao lado do irmãozinho, um pai bruto e sonha tornar-se DJ. E ser feliz ao lado do primeiro amor. No espanhol, uma adolescente, dilacerada pela perda da mãe, enfrenta, junto com o pai, ringues de luta livre.

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A atriz mirim Doha Ramadan foi premiada com a melhor atuação por “Feliz Aniversário”, de Sarah Goher © Mario Miranda Filho/Agência Foto

“The President’s Cake” (em tradução livre, “Um Bolo para o Presidente”), o grande vencedor da Mostra, se passa no começo dos anos 1990, quando os EUA invadiram o Iraque, país acusado (injustamente, como alertara a ONU) de estar processando urânio para fabricação de armas atômicas. Sob o governo autoritário de Saddam Hussein, as escolas estimulam as crianças a praticar boas ações cívicas.

Caberá à cativante Lamia, de nove anos, desempenhar tarefa inusitada: preparar um bolo para festejar o aniversário do presidente. Em tempo de guerra, falta de tudo, principalmente comida. A situação é mais grave entre famílias de poucas posses. E há um complicador. A garotinha não deseja assumir a tarefa. Porém, se não a desempenhar, as consequências serão muito desagradáveis para sua pequena família. O jeito é sair pela cidade em busca dos ingredientes.

A protagonista é encantadora, a trama realista, seca, sem idealizações. Os perigos rondam a menina, que, em busca de farinha, ovos e fermento, se aproximará de ambientes inadequados à sua idade, incluindo um conjunto de salas que exibem filmes pornôs.

Lamia traz algumas semelhanças com Toha (Doha Ramadan), a protagonista de “Feliz Aniversário”, premiada como a melhor atuação do festival paulistano. As duas têm nove anos e muitos sonhos. A vida da menina egípcia é mais dura ainda. Ela não é bonita como Lamia, nem usa os trajes coloridos do Iraque. Mas correrá perigos semelhantes, ao embarcar num tuk-tuk.

Apesar da pouca idade, Toha trabalha como doméstica numa residência de classe média. Soma tarefas diárias a uma boa convivência com a filha da patroa. Esta garota, bem-situada na escala social, faz aniversário, mas a mãe não pretende realizar nenhum festejo, pois encontra-se em complicado processo de divórcio do marido.

A “doméstica” mirim (prática ilegal, também no Egito) tudo fará para convencer a “patroa” a concretizar a festinha. Afinal, ela deseja apagar uma das velas do bolo da amiga e, naquele instante fugaz, realizar um pedido. O que começa como uma comédia, com Toha enchendo a tela com seus atos inesperados, assumirá tons de um drama social à moda neo-realista.

As sequências realizadas num vilarejo periférico, onde vive, às margens do Nilo, a família de Toha, deixariam Rosselini e Zavattini comovidos. O júri acertou na escolha de Doha Ramadan. A atriz mirim tem tudo para ir longe. E demonstrou isso até no espirituoso agradecimento, que enviou por vídeo, do Egito. Ela somou alegria e bom humor ao dedicar o prêmio “a todas as Tohas do mundo”.

“DJ Ahmet”, de Georgi Unkovski, é um filme cheio de vida e amor à música. Numa comunidade tradicional, na Macedônia do Norte, república da extinta Iugoslávia, vivem Ahmed e seu irmãozinho, de uns cinco anos, que não fala. Desesperado, o pai submete a criança a tratamento de um curandeiro. Numa pequena propriedade rural, Ahmet ajuda o pai, muito do autoritário, a criar ovelhas. O adolescente é louco por rap e outros ritmos contemporâneos, distantes da música tradicional cultivada por sua comunidade.

Entre as ovelhas e os cuidados com o irmão, o adolescente encontra tempo (e modestos equipamentos) para fazer da música o seu refúgio. Surge, porém, um elemento perturbador. O DJ se apaixona, num verdadeiro coup de foudre, por jovem melhor situada na escala social, linda como uma princesa de contos de fada e já prometida a outro.

O filme, que conquistou o Prêmio do Júri e o do Público, no Sundance Festival, conjuga tradição e modernidade e tem final aberto e instigante. Seus protagonistas são ótimos e a narrativa, sintética e ritmada, nos revela muito do interior da pouco conhecida Macedônia do Norte (que já nos surpreendeu com o documentário “Honeyland”, de Koteveska e Stefanov, finalista ao Oscar, cinco anos atrás).

Como a safra que concorreu ao Troféu Bandeira Paulista era muito forte, o júri decidiu, ainda, por atribuir menção honrosa a um filme (o espanhol “A Luta”) rodado na Ilhas Canárias. A trama dirigida por Alayón toma a luta livre como prática de dedicação e ética, não como espetáculo fake destinado a públicos televisivos pouco exigentes.

A protagonista Mariana vive com o pai, Miguel, na cidade de Fuerteventura. Os dois sofrem forte abalo pela perda da esposa (e mãe). Seguem seus caminhos à deriva. E dedicam-se à luta tradicional no lugar.

O cineasta espanhol, que é também diretor de fotografia premiado internacionalmente, mostra seus protagonistas em momentos difíceis. Miguel já não é o mesmo. A ira de Mariana a leva a romper regras. Imersos em incertezas, eles buscam saídas, antes que seja tarde demais.

O público, que sempre elegeu seus preferidos entre as centenas de longas exibidos, anualmente, pela Mostra, premiou quatro filmes – dois internacionais (a ficção “Palestina 36, de Annemarie Jaci,  e o documentário “Yanuni”, de Richard Ladkani, e os brasileiros “As Criadas”, ficção de Carol Rodrigues, e “Cadernos Negros”, de Joel Zito Araújo, doc).

Os júris paralelos da Mostra SP – além dos oito prêmios do Júri Oficial e do Público, foram atribuídos mais nove troféus – fizeram suas escolhas e destacaram, em especial, dois filmes, o anglo-nigeriano “A Sombra do meu Pai”, de Akinola Davies Jr, e o brasileiro “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo.

O primeiro, indicado pelo Reino Unido (não pela Nigéria) ao Oscar internacional, foi eleito pela Crítica como o melhor filme estrangeiro. E teve sua direção de arte, assinada por Jennifer Anti e Pablo Anti, reconhecida como a melhor da competição pela Brada (Associação de Diretores de Arte).

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“A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo, recebeu o Prêmio da Crítica e o Troféu Prisma Queer © Mario Miranda Filho/Agência Foto

“A Natureza das Coisas Invisíveis”, realização brasiliense, que fez sua estreia na mostra Generation, em Berlim, e foi exibido e premiado em Gramado, conquistou, além do Prêmio da Crítica, o Troféu Prisma Queer, atribuído pela primeira vez. Júri formado especialmente para atribuir o troféu (destinado a produções LGBTQI+) laureou também “Queerpanorama”, de Jun Li, como melhor filme internacional. Ao cearense “Vida e Morte Madalena”, de Guto Parente, coube o Prisma Queer especial.

O júri Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), que avalia apenas a produção realizada em nosso território e vinda de diretores de até segundo longa-metragem, laureou “O Pai e o Pajé”, de Iawarete Kaiabi, codirigido por Felipe Tomazelli e Luís Villaça.

O Júri da Netflix escolheu “Virtuosas”, longa de terror da catarinense de Cíntia Domit, para ser laureado e exibido em 190 territórios pela poderosa plataforma de streaming.

O Projeto Cinema Paradiso, por sua vez, optou pela animação “Coração das Trevas”, do brasileiro Rogério Nunes, que adaptou e ambientou o romance de Joseph Conrad em um Rio de Janeiro conflagrado pelo caos social. Sim, o mesmo romance que deu origem ao “Apocalypse Now”, de Coppola.

Este ano, a solenidade de premiação sofreu enorme atraso, mas, depois de iniciada, correu célere. Os agradecimentos (presenciais ou enviados por vídeo de países distantes) se conformaram rápidos e substantivos. Muitos deles evocaram a tragédia ocorrida no Rio de Janeiro, onde operação da polícia matou mais de cem pessoas nos Complexos do Alemão e da Penha. Outros defenderam políticas públicas de apoio ao audiovisual brasileiro e, com ênfase, a necessidade de urgente aperfeiçoamento da lei que se propõe a regular as plataformas de streaming atuantes no Brasil.

A secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga, assegurou que “o Governo conseguiu adiar em uma semana” a votação do texto apresentado pelo Congresso Nacional, cujo resultado significa “retrocesso de 60 anos para nosso cinema”. Joelma lembrou que “o Ministério da Cultura não foi ouvido pelos parlamentares”. Mas que “novos esforços vêm sendo empreendidos para negociar as necessárias melhorias” no texto relatado pelo deputado Dr. Luizinho, do PP.

Em seu agradecimento pelo Prêmio da Crítica atribuído a seu longa de estreia,“A Natureza das Coisas Invisíveis”, Rafaela Camelo convocou os colegas a participarem de manifestação pelo VoD, no dia 3 de novembro, em frente à Cinemateca Brasileira (em São Paulo) e à Ancine (Agência Nacional de Cinema), no Rio de Janeiro.

A secretária Joelma Gonzaga avisou, ainda, durante a cerimônia de premiação da Mostra SP, que será lançado, em breve, um edital de festivais. Afinal, “o MinC acertou com a Petrobras e o Banco do Brasil investimento, via Lei Rouanet, de R$17 milhões para fomento de mostras e festivais dedicados à difusão do cinema brasileiro nas diversas regiões do país”.

Renata Almeida, diretora do festival paulistano e apresentadora da festa de encerramento ao lado de Serginho Groisman, contou, na imensa Sala Petrobras, que “só a Cinemateca Brasileira recebera, nestas duas últimas semanas, 29 mil espectadores”. E acrescentou: “Nossa ‘Monstra’ altera, sim, os espaços que nos recebem, causa alguns transtornos, mas lembro que só atrapalhamos por 14 dos 365 dias do ano”. E que “nosso imenso público pôde ver dezenas e dezenas de filmes muito aguardados, alguns inesperados”. E convidou a todos para a edição 2026, a de número 50. Meio século de história.

Em seguida, o público assistiu ao filme “Jay Kelly”, protagonizado por George Clooney, secundado por Adam Sandler, Laura Dern, Billy Crudup, Greta Gerwig, mulher do diretor Noah Baumbach, e pela italiana Alba Rohrwacher. Uma produção desenhada dentro dos padrões Netflix, exibida no Festival de Veneza, para fãs do galã grisalho.

Sabe-se, agora, que outro filme sobre o mundo do cinema (Jay Kelly, astro de Hollywood, repensa vida e carreira, enquanto viaja à Itália para receber prêmio consagrador) está por vir, tendo Clooney no elenco. Trata-se de versão cinematográfica da série “Dix pour Cent”, megassucesso francês, no qual o ator repetirá parceria com Camille Cottin. Os dois protagonizaram badalado comercial de café. Agora, viverão, juntos, os contratempos típicos da vida de astros do cinema em suas complicadas relações com seus descolados agentes.

Confira os premiados:

Mostra de Novos Realizadores (Júri Oficial)

. “The President’s Cake”, de Hasan Hadi (Iraque, em parceria com os EUA e Catar) – melhor film
. “DJ Ahmet”, de Georgi M. Unkovski (Macedônia do Norte, em parceria com República Tcheca, Sérvia e Croácia) – Prêmio Especial do
Júri
. “Feliz Aniversário”, de Sarah Goher (Egito) – melhor atuação para a menina Doha Ramadan
. “A Luta”, de Jose Alayón (Espanha, em parceria com a Colômbia) – Menção Honrosa do Júri

PRÊMIOS DO PÚBLICO

. “Palestina 36”, de Annemarie Jacir (Palestina, Reino Unido, França, Dinamarca, Noruega, Catar, Arábia Saudita, Jordânia) – melhor filme de ficção internacional
. “Yanuni”, de Richard Ladkani (Áustria, Brasil, EUA, Canadá, Alemanha) – melhor documentário internacional
. “As Criadas”, de Carol Rodrigues – melhor filme de ficção brasileiro
. “Cadernos Negros”, de Joel Zito Araújo – melhor documentário brasileiro

PRÊMIOS DA CRÍTICA

. “A Sombra do meu Pai”, de Akinola Davies Jr (Reino Unido, Nigéria) – melhor filme internacional
. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo (Brasil, em parceria com o Chile) – melhor filme brasileiro
. “O Pai e o Pajé”, de Iawarete Kaiabi, codireção de Felipe Tomazelli e Luís Villaça – Prêmio Abraccine (Associação Brasileira de Críticos e Cinema) para o melhor longa brasileiro realizado por diretores de primeiro ou segundo filme

PRÊMIOS ESPECIAIS

. “Virtuosas”, de Cíntia Domit Bittar (Brasil) – Prêmio Netflix
. “Coração das Trevas”, de Rogério Nunes (Brasil, França) – Prêmio Projeto Paradiso
. “A Sombra do meu Pai”, de Akinola Davies Jr (Reino Unido, Nigéria) – Prêmio Brada (Associação de Diretores de Arte), para Jennifer Anti e Pablo Anti

PRÊMIOS PRISMA QUEER

. “Queerpanorama”, de Jun Li (EUA, Hong Kong, China) – melhor filme internacional
. “A Natureza das Coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo (Brasil, Chile) – melhor filme brasileiro
. “Vida e Morte Madalena”, de Guto Parente (Brasil, Portugal) – Prêmio Especial do Júri

JÚRI DA MOSTRA

. Laura Mora, da Colômbia (roteirista de “Cem Anos de Solidão”, Netflix)
. Denise Fernandes, cineasta portuguesa
. Daniel Dreifuss, produtor brasileiro radicado nos EUA
. Peter Debruge, dos EUA, crítico-chefe da revista Variety
. Atilla Salih Yücer, produtor da África do Sul

Prêmio Humanidade (atribuído pela curadoria da Mostra)

. Euzhan Palcy (Martinica)
. Jafar Panahi (Irã)
. Jean-Pierre e Luc Dardenne (Bélgica)

Prêmio Leon Cakoff (atribuído pela curadoria da Mostra)

. Charlie Kaufman (EUA)
. Mauricio de Sousa (Brasil)


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/10/mostra-premia-filmes-humanistas-do-iraque-macedonia-e-egito-todos-estrelados-por-criancas-e-jovens/

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