“O Agente Secreto” hibridiza thriller político com altas doses de humor, pirraça, drama familiar e aprontações trash da Perna Cabeluda

Por Maria do Rosário Caetano

“O Agente Secreto”, estreia dessa quinta-feira, 6 de novembro, em centenas de salas de cinemas de todo país, é um “filme de época” que evoca o tempo presente.

A narrativa desse thriller político, temperado com humor, terror e drama familiar, nos transporta ao ano de 1977. Durante, pois, a ditadura militar, com o General Ernesto Geisel, de origem germânica, na presidência. Que ninguém espere, porém, trama política à moda de Costa-Gavras ou Elio Petri. Não veremos soldados fardados nas ruas, nem cárceres e presos torturados. Apenas a busca da atmosfera de tempos obscuros. De “muita pirraça”.

Veremos o protagonista, Marcelo (Wagner Moura), num posto de gasolina nas franjas do Recife, metrópole cujo povo se esbalda nos festejos carnavalescos. Não muito distante da bomba de combustível há um corpo estendido no chão, cobiçado por moscas varejeiras e, depois, por cães.

Um futuro flashback (um oxímoro?) nos levará a recuo situado poucos anos atrás. Veremos então Armando, nome real do professor (e especialista em tecnologia), que conhecemos como Marcelo. Noutra mudança temporal, passadas cinco décadas, chegaremos aos dias de hoje. Ao longo de 158 minutos, veremos a urdidura de trama complexa, que joga com o tempo e hibridiza gêneros e obsessões do cineasta, em especial o culto ao próprio cinema.

Além de ambientar parte do filme na cabine de projeção do Cine São Luiz e num cinema pornô (com direito a boquete), “O Agente Secreto” prestará tributo ao cinema brasileiro e a astros de TV (em sua abertura, soma de fotos fixas). E exibirá trechos de filmes que marcaram a década de 1970, de “Tubarão”, “A Profecia” e “O Iluminado” a “Pasqualino Sete Belezas”, “Os Trapalhões” e “O Magnífico”, de Broca.

Qualquer sinopse de “O Agente Secreto” será redutora. Mas podemos dizer que o filme tem em Armando-Marcelo seu protagonista absoluto. E que ele será cercado por dezenas de personagens e uma miríade de acontecimentos. Estes vão do estranho trabalho de Marcelo num Posto de Identificação, passando pela convivência com refugiados políticos (como ele) e desaguando em algo inusitado, a doideira de uma “Perna Cabeluda” de índole assassina.

Armando (ou Marcelo) será visto em seu regresso à cidade natal, para reencontrar o filho pequeno, que vive sob a guarda do avô materno (Carlos Francisco), projecionista do Cine São Luiz. E, quem sabe, encontrar o sossego perdido e curar as feridas da perda da mulher, Fátima (Alice Carvalho). Intuímos que o passado do protagonista esconde alguns segredos. Que se revelarão, como num quebra-cabeças, depois de 2h38 minutos de projeção.

O sexto longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, impregnado de sabor local-recifense, vem alcançando significativa receptividade tanto no exterior, quanto nas diversas regiões brasileiras. Só o diálogo do cineasta com o cinema de terror (uma de sua obsessões) vem causando espécie em parte do público.

“O que é aquilo? O que aquela subtrama tem a ver com o filme?”, perguntam alguns. Algumas, em especial.

Quem acompanha a trajetória do pernambucano desde seus curtas, sabe que ele cultiva com imenso prazer o humor desabrido (voluntário ou involuntário) dos filmes de terror. Dessa vez, em “O Agente Secreto”, fruto de evocação da Recife de sua infância, ele quis abrir espaço destacado à tal “Perna Cabeluda”, invenção da imprensa sensacionalista pernambucana.

O referido membro putrefato sai das estranhas de um tubarão (também defunto), ganha vida e sai barbarizando pela metrópole. E arrancando risos. A tal “Perna Cabeluda”, tomada pelo reacionarismo ultramoralista de tempos recentes, irá vingar-se, inclusive, de homens que fazem sexo em parque público. Há quem aceite e se divirta com a inusitada “lenda urbana” recifense. Outros não se interessam por esta estranheza intrusiva!

KMF, que roteirizou o filme sozinho (e escorado em sua onívora imaginação), dividiu a história em três partes – “O Pesadelo do Menino”, “Instituto de Identificação” e “Transfusão de Sangue”. E o fez sem preocupar-se com o detalhamento da contextualização histórica. Sua intenção explícita é realizar um “filme contemporâneo”. Mesmo que direção de arte, figurinos, locações e múltiplas referências recriem o passado, a trama quer, isto sim, evocar nossos conturbados dias. E mostrar a permanência-recorrência de procedimentos e de lideranças político-empresariais retrógradas, que combatem as universidades, o desenvolvimento científico e tecnológico, a liberdade artística e de expressão.

A fotografia de Evgenia Alexandrova, russa radicada na França, traz as cores e atmosferas do cinema norte-americano dos anos 1970, captadas por lentes e câmara Panavision, as mesmas usadas pela geração que teve nos blockbusters spielberguianos sua mais poderosa representação.

A trilha sonora é excepcional. Impossível não destacar sequência sangrenta, de perseguição ao protagonista, que dura uns sete minutos, e resulta em corpos dilacerados. A opção sonora de tal sequência se dá com a inesperada escolha de “A Briga do Cachorro com a Onça”, da Banda de Pífano de Caruaru. É o Brasil impregnando narrativa construída com a gramática da “Nova Hollywood” setentista.

Por fim, não há como não destacar o elenco do filme. Wagner Moura está formidável e fez por merecer o prêmio cannoise. E olhe que ele derrotou pesos pesados, como o libanês Fares Fares, protagonista do thriller sueco-egípcio “Águias da República”, de Tarik Saleh.

KMF, detentor do prêmio de melhor diretor (só Glauber Rocha, com “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” ganhara tal láurea, em 1969), mostra, mais uma vez, seu talento para escolher e conduzir atores. Além de Carlos Francisco, perfeito no papel do sogro do protagonista, há que se destacar a presença carismática de Robério Diógenes, perfeito na pele de abusado delegado recifense.

Merece destaque, também, a ousadia do realizador pernambucano ao escalar o galã Gabriel Leone para papel em tudo oposto ao que ele fez até hoje, seja em telenovelas, filmes (ou séries) brasileiros ou internacionais. A dupla que o jovem compõe com Roney Vilella é notável. E não podemos esquecer de Buda Lira, capaz de brilhar em papel opaco, o de um servidor do Instituto de Identificação, organismo essencial a qualquer (e vigilante) regime discricionário.

Rever “O Agente Secreto” revela-se experiência enriquecedora. Pude fazê-lo nos festivais de Brasília e Belo Horizonte, em salas com telas imensas e projeção qualificada.

Por sua arquitetura fragmentada, seu humor e violência desconcertantes (e cenas de sexo idem), o filme de KMF tem muitas camadas a revelar num segundo (ou terceiro) encontro. Afinal, não nos é oferecida narrativa de fácil leitura.

O filme tem um quê de disjuntivo. E chega para fazer companhia ao melhor dos seis longas-metragens realizados pelo pernambucano — o (ainda) insuperável “O Som ao Redor”. Com o qual, aliás, KMF dialoga, seja na abertura que soma fotos fixas, seja no uso arrebatador do som, seja na trama alusiva e atmosférica. Trama que mais provoca, que elucida. Embora às vezes desembeste pelas searas do trash terrorífico.

 

O Agente Secreto
Brasil, França, Países Baixos. Alemanha, 2025, 158 minutos
Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Carlos Francisco, Maria Fernanda Candido, Gabriel Leoni, Roney Vilella, Isabel Zuaa, Tânia Maria, Robério Diógenes, Hermila Guedes, Igor de Araújo, Alice Carvalho, Buda Lira, Susy Lopes, Luciano Chiroli, Gregório Graziosi, Ítalo Martins, Tomás Aquino, Marcelo Valle, Wilson Rabelo, Rubens Santos, Joálisson Cunha, Laura Lufési, Edilson Silva, Udo Kier
Fotografia: Evgenia Alexandrova
Montagem: Eduardo Serrano e Matheus Farias
Música: Thomaz Alves Souza e Matheus Alves
Direção de arte: Thales Junqueira
Produção: Emilie Lesclaux
Custo estimado: R$ 28 milhões
Distribuição: Vitrine Filmes


Fonte: https://revistadecinema.com.br/2025/11/o-agente-secreto-hibridiza-thriller-politico-com-altas-doses-de-humor-pirraca-drama-familiar-e-aprontacoes-trash-da-perna-cabeluda/

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